Folha de S. Paulo


Quem delira evita constatar sua própria insignificância

Mariza Dias Costa/Folhapress
Mariza de 6.abr.2017

Entre 1798 e 1799, exilado em Hamburgo, o abade Augustin Barruel publicou os cinco volumes de suas memórias para servir à história do jacobinismo.

Pelo título, o leitor espera uma história dos conflitos entre as facções jacobinas durante a Revolução Francesa e o Terror, mas não é isso o que importa a Barruel. O abade quer nos explicar que a Revolução Francesa não teve nada a ver com o preço do pão ou do brioche; de fato, segundo ele, não foi revolução popular nenhuma, mas o resultado de uma grande conspiração anticristã.

Os illuminati, grupo diabólico, teriam se infiltrado na maçonaria para acabar com a monarquia e com a religião. E eles tinham, como aliados, os filósofos do século 18, os rosacrucianistas, os cavaleiros templários etc. As memórias de Barruel parecem um romance de Dan Brown (os illuminati, no começo de "Anjos e Demônios", são os culpados pela morte do papa e por várias outras atrocidades).

É provável que Barruel fosse clinicamente paranoico. A Revolução Francesa e a grande mudança do fim do século 18 são eventos mais do que complexos: para explicá-los e narrá-los como efeitos de um complô de intenções humanas definidas é preciso delirar.

Quem delira tem duas vantagens: pode acreditar cegamente no seu delírio e também evita constatar sua própria insignificância (é preferível se ver como vítima de uma conspiração do que como folha agitada pelos turbilhões insensatos da história).

Barruel, além de ser o santo patrono das teorias conspiratórias, é também considerado como um grande conservador porque ele nunca se resignou ao fim do Antigo Regime.

Você vai achar que é coisa do passado. Será que alguém hoje não aceita o fim da monarquia absoluta? Ou o fim da separação das três ordens (clero, nobreza e plebe), com direitos diferentes?

Numa noite dos anos 60, eu levei para sua casa um amigo de uma antiga família da Itália central, o qual, recentemente (santo Google me informou agora mesmo), acabou sendo Grão-Prior da Ordem de Malta.

Naquela noite, eu fiz uma barbeiragem, um táxi parou ao nosso lado no farol seguinte e nos mandou às putas que nos pariram. Meu amigo baixou o vidro e respondeu, deixando o taxista atônito: "Meu jovem, se não fosse pelo acidente histórico mal-aventurado que passa pelo nome de Revolução Francesa, você sequer ousaria me endereçar a palavra".

Ridículo, hein? Mas, para muitos, ainda hoje, os tempos do Antigo Regime são a época da verdadeira "dolce vita". Sob um verniz "moderno" de diferenças que seriam "apenas" quantitativas, uma boa parte das "elites" nacionais, aliás, ainda sonha com uma sociedade de "ordens" separadas drasticamente.

No fim do primeiro volume de sua obra, após ter passado em revista as ideias e as figuras do Iluminismo, Barruel escreve: "Existe um Deus? Ou não existe? Tenho ou não uma alma para salvar? () Eis certamente as questões elementares da verdadeira ciência e da filosofia () E o que respondem a essas grandes perguntas todos os nossos pretensos sábios, bem enquanto agitam sua conspiração contra o Cristo?".

O que o leitor espera nessa altura são trovoadas de descrença e de ateísmo pelos "infames" filósofos modernos, mas não é isso que segue. O que indigna Barruel não são crenças diferentes da dele, como, por exemplo, negações da existência ou da presença de Deus no mundo. Barruel continua assim:

"Nós colocamos sob os olhos do leitor as próprias expressões deles. E o que o leitor viu? Homens que dizem dominar o universo se fazem entre eles a confissão explícita e repetida de que eles não souberam formar uma única opinião firme sobre nenhuma dessas questões. Voltaire, ele que era consultado por príncipes e burgueses, consulta ele mesmo D'Alembert para saber se ele deve acreditar na sua alma e em Deus.

Todos acabam por confessar que eles são reduzidos a colocar em cada caso o "non liquet" [não está claro, no Direito Romano]; eles não sabem. Mas o que sabem, então, esses filósofos, esse mestres tão estranhos que não podem sequer resolver entre eles essas questões elementares da filosofia?".

Pois é. Eles não sabem. É por isso que não são loucos e é por isso que (junto com seus contemporâneos americanos) promoveram a liberdade das consciências e inventaram a democracia como forma de governo.


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