Folha de S. Paulo


O que é um radical?

Mariza/Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Mariza de 30 de março de 2017

Será que todos os são-paulinos são "bambis"? Mesmo se você for corintiano, responder sozinho a essa pergunta é complicado. 1) Você suspeita que os são-paulinos são paulistanos quaisquer, como os corintianos. 2) Você não sabe bem se "bambi" deveria ser um insulto. 3) Alguns amigos e parentes seus –quem sabe até seu filho– são são-paulinos.

A solução dessas dificuldades consiste em deixar a responsabilidade dessa besteira para quando você está no meio da sua torcida. Aí, quem fala não é você, é a Gaviões, justamente.

O grupo, em suma, serve para aliviar o fardo da responsabilidade individual. No grupo, nós nos tornamos capazes de ações que, sozinhos, nunca cometeríamos.

Mas há figuras solitárias, que nunca frequentaram grupos e, de repente, radicalizam-se e agem, matando por atropelamento e golpes de faca, como o assassino de Londres na semana passada (ou como o caminhoneiro de 14 de julho passado, em Nice).

Certo, esses indivíduos invocaram um grupo, mas com o qual eles mal tinham relações –a ponto que eles parecem ter agido por conta própria. Quem são eles? Como eles se radicalizaram?

É possível interrogar o isolamento social e familiar de cada um deles ou, o conflito entre seu desejo de inserção e a frustração de não conseguir se integrar. Ou ainda a radicalização pode ser o efeito de uma neurose clássica: um exemplo tocante disso é "Pastoral Americana", de Philip Roth (agora um filme, com e de Ewan McGregor).

É possível também perguntar não tanto "quem se radicaliza?", quanto "o que é radicalização?"

Um psiquiatra e filósofo, Maurice Dide, num livro de 1913, "Les Idéalistes Passionnés", propunha a ideia de que a idealização seja o vício comum aos que se apaixonam e aos extremistas radicais –ou seja, o jovem Werther e Lênin compartilhariam o mesmo transtorno. A ideia é sedutora, e talvez a idealização seja mesmo o maior percalço de quem se apaixona, por qualquer coisa que seja.

Agora, um amigo, Caio Rodriguez, chamou minha atenção para uma linha de pensamento mais recente, assinalando-me um artigo da "Wired", de fevereiro, sobre o interesse da Justiça dos EUA num programa que se propõe desradicalizar terroristas (migre.me/wk4xI).

Segundo Daniel Koehler, do Girds (acrônimo para o instituto alemão de estudos de radicalização e desradicalização), há como saber se um indivíduo que se tornou radical, em sua relação com uma religião ou uma ideologia, poderia ou não voltar a ser cidadão de uma democracia. Quando possível, o Girds propõe um tratamento de desradicalização como alternativa à cadeia.

Koehler define a radicalização como uma forma de ignorância –voluntária ou involuntária, tanto faz: radical é aquele que só acredita numa explicação, que lhe parece exaustiva e total, ou seja, suficiente e valendo para tudo.

O radical não enxerga a pluralidade possível das explicações e das versões: ele é o famoso homem de um livro só.

"Timeo hominem unius libri", receio o homem de um livro só. Atribuída (misteriosamente) a São Tomás ou a Santo Agostinho, essa expressão já foi entendida assim: tenho medo do homem de um livro só porque, especializadíssimo, ele vai ser um debatedor especialmente afiado.

Hoje, vige o sentido moderno da expressão, pelo qual o homem que coloca fé num só livro, que leu apenas um livro (pior ainda se for o único livro que ele escreveu) é um perigo 1) para ele mesmo (porque ele será o escravo desse livro só, como dizia o grande Joseph Needham), e 2) para todos os outros, porque ele não aceita a complexidade, a pluralidade e o conflito que a realidade e a variedade dos livros sempre apresentam. O homem de um livro só é o radical descrito por Kohler.

Na terceira vez que alguém, numa conversa, cita o mesmo livro para justificar suas posições, não hesite, chame o Girds. Nenhuma exceção para a Bíblia, até porque o único livro que importa ao radical é sempre, para ele, a palavra de algum Deus.

Em contrapartida, a desradicalização proposta pelo Girds consiste em tornar a vida e o mundo mais complexos, em restaurar o presença de perguntas, dúvidas e adversativas no discurso do radical que é, em geral, feito de afirmações.

Você quer lutar contra a radicalização? Não simplifique, complexifique. E, mesmo se achar que você tem a resposta, prefira a pergunta.


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