Folha de S. Paulo


Do lixo ao o picho, tudo indica que o espaço público é terra de ninguém

O prefeito João Doria e o secretário de Cultura, André Sturm, querem que a cidade reserve espaços para os grafites (que a embelecem) e querem acabar com as pichações (que a deturpam).

Domingo, no avenida 23 de Maio, onde ficavam grafites que foram cobertos de tinta cinza pela prefeitura, apareceu a escrita: "SP, falta saúde, educação, e o problema é a pixação?".

Ou seja, com tudo o que não funciona em São Paulo, será que devemos cuidar de questões "apenas" estéticas? Ouviam-se coisas parecidas durante a Operação Belezura promovida por Marta Suplicy, em 2001. Então, é frescura?

Até o começo dos 1990, Nova York era pior do que São Paulo hoje. Os viciados em heroína se espalhavam pela cidade e precisavam de US$ 150 por dia para sua dose. Qualquer área "verde" (verde em termos: havia mais seringas usadas do que brotos) era fechada a partir das 18h. No metrô, fedendo a urina e pichado em cada espaço (muros e vagões), ninguém se aventurava depois das 22h.

Mariza/Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Mariza de 02 Fev de 2017

A partir de 1994, o prefeito Giuliani e o comissário Bratton apostaram numa ideia de G. Kelling e C. Coles –"Fixing Broken Windows" (consertando janelas quebradas), publicado em 1996, mas o artigo originário é de 1982–, segundo a qual, se você reprimir severamente (e sem parar) pequenas infrações (como urinar ou jogar lixo na rua, deturpar o patrimônio público ou privado etc.), os crimes mais graves diminuirão.

Houve críticos para dizer que a de Kelling e Coles era uma teoria: nada provaria que, reprimindo infrações contra o ambiente e a ordem pública, nossas ruas se tornariam mais seguras.

Pois bem, em 2008, a revista "Science" (322, 1681) publicou uma pesquisa em que Kees Keizer e outros, da universidade de Groningen, Holanda, inventaram e realizaram seis experiências que comprovam a ideia de Kelling e Coles. Escolho duas.

Num estacionamento para bicicletas de Groningen, foi colocado um sinal que proibia grafitar; logo, em cada bicicleta estacionada foi colocado um folheto publicitário. Não havia lixeira à vista. Na condição "ordem" (ou seja, sem pichos ao redor do sinal que os proibia), 33% dos usuários jogaram os folhetos no chão. Na condição desordem (com pichos nos muros ao redor do sinal que os proibia), foram 69%. Ou seja, descuido produz mais descuido.

Na entrada de um prédio de uma rua de Groningen foram colocadas caixas de correio visíveis por quem passasse a pé. De uma das caixas sobressaía um envelope com uma nota de 5 euros à vista. Na condição "ordem" (calçada limpa e sem pichos), só 13% dos passantes pararam e roubaram a nota. Na condição "desordem" (calçada suja e pichos nas caixas), foram 27%. Ou seja, descuido produz crime.

O que importa e tem consequências não é a qualidade estética de nosso ambiente urbano. Se assim fosse, a linda praia carioca seria um lugar seguro e tranquilo, em vez de ser teatro de arrastões dia após dia.

O que importa são os sinais aparentes de negligência ou cuidado públicos. A sujeira, o lixo, os buracos na rua e na calçada, a falta de iluminação, tudo isso nos aflige, sim, pela sua feiura, mas nos afeta mais ainda por expressar abertamente que o espaço público é uma zona da qual ninguém cuida e pela qual ninguém se importa: um lugar, portanto, sem lei, onde tudo é permitido.

Você joga um papel, um maço de cigarros vazio ou uma latinha na calçada? Cospe, mija no chão? Seus restos são declarações da ausência do poder público.

Mais um exemplo é a fiação. Levante seu olhar: os fios (energia, telefone, cabo etc.) são um emaranhado incompreensível que esconde o céu. A desordem de fios inutilizados, gatos, ligações abusivas etc. é uma metáfora permanente e visível do descontrole urbano.

Estamos numa cidade que não parece ser de ninguém. Não estranha que seja pichada e repichada por todo lugar: se ela não é de ninguém, era de se esperar que qualquer um tentasse plantar sua bandeira, impor sua marca –vai que cola.

Claro, não foram os pichadores que nos roubaram a cidade. Na verdade, se eles passam suas noites semeando sua assinatura pela cidade inteira, é porque a cidade não parece lhes reconhecer lugar algum, eles estão entre os silenciados e insignificantes: "Eu não sou ninguém, mas olhe lá, naquele lugar impossível, deixei minha marca".

Valeu. Entendo. O problema é que, com aquela marca, amigo, você não ganhou nada. Só confirmou que a cidade na qual vivemos é uma terra de ninguém.


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