Folha de S. Paulo


Moralistas e 'engraçados' autorizam assassinos de transexuais e prostitutas

Assisti a "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu", em São Paulo, no Sesc Pinheiros –em cartaz, de quinta a sábado, até 5 de novembro. Depois disso, a peça viaja para Europa. Espero que, na volta, tenha outra temporada mais longa.

É um monólogo, dirigido por Natalia Mallo e escrito por Jo Clifford, inglesa que mudou de sexo em 2006, aos 56 anos. Clifford mostra (a ela mesma e ao mundo) que o Cristo não é inimigo dela nem da vida que lhe coube. Ela tem razão.

A atriz é Renata Carvalho, travesti de 35 anos; ela consegue nos fazer rir e chorar como a peça manda.

Mariza/Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração de Mariza para coluna contardo do dia 20 de outubro

Se você for cristão, não perca. E, se você for padre ou pastor, organize uma excursão de sua comunidade –será espiritualmente mais útil do que assistir a "Os Dez Mandamentos". Ou então contrate a peça para a homilia do terceiro domingo de Quaresma –é uma excelente ilustração do mistério da redenção.

Lucas (15, 1-2): "Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir. Os fariseus e os escribas murmuravam: Este recebe pecadores e come com eles". Jesus responde explicando a alegria da redenção por três parábolas, a da ovelha perdida, a da dracma perdida (na peça, é o brinco perdido) e a do filho pródigo (na peça, é a filha expulsa de casa).

O leitor dos Evangelhos sabe que fariseus e escribas têm razão: Jesus tem simpatia por adúlteras, prostitutas e demais pecadores e pecadoras. Enquanto isso, ele tem antipatia por moralistas e hipócritas.

"Moralistas e hipócritas" é um pleonasmo. Se os moralistas não fossem hipócritas, não precisariam ser moralistas: por que me preocupar com o que faz meu vizinho, se não porque ele desperta em mim um desejo ou uma tentação que tento esconder de mi mesmo e do mundo?

Em 2003, meu filho, num intercâmbio, passou um ano letivo na PUC de Curitiba. Uma noite, ele foi convidado por alguns colegas para um programa que, foi-lhe dito, ele "adoraria": passar de carro por ruas semidesertas e jogar laranjas nas prostitutas travestis que esperavam clientes.

Meu filho ficou abismado. Pedras para machucar, ovos para sujar, bananas como gozação do pênis, daria para explicar. Mas por que laranjas? A psicanálise ajuda: laranja não é só um fruto, é também o testa de ferro, que colocamos no nosso lugar quando estamos a fim de fazer algo escuso. Os estudantes de Curitiba jogavam laranjas porque os travestis na rua eram os laranjas da tentação de eles mesmos, os estudantes, vestir peruca e sainha e vender-se pelas ruas. Laranjas nos laranjas.

O Brasil tem o recorde de 100 travestis e transexuais assassinados na rua a cada ano. Quem autoriza os apedrejadores ou "alaranjadores"? São os moralistas e os "engraçados".

Os moralistas (fariseus e escribas) querem que o "pecado" seja punido. De fato, dessa forma, eles acabam incitando um fiel ou outro a apedrejar "a puta" ou "o veado" que representam tentações "culpadas": mato "o traveco" para me liberar do traveco em mim.

E o "engraçado"? Pois é, o moralista denuncia os desejos, o "engraçado" pretende escondê-los, o que é pior. Os "engraçados" são os piadistas de padaria; eles permitem que seu público negue seus próprios desejos, que são transformados em objetos de riso e, graças ao riso, confinados nos outros. Nada a ver comigo; prova disso, estou rindo: olhe como é engraçado ver os travestis fugindo das laranjas, com saltos altos e trejeitos.

O moralista culpa, o "engraçado" desagrava. O moralista ainda pode achar discutível a ideia de jogar pedras. O "engraçado" sequer é sensível ao argumento do próprio Cristo (quem estiver sem pecado jogue a primeira pedra) porque ele não se reconhece como pecador.

Na semana passada, Rita Cadillac foi convidada a um programa "engraçado" para deixar a marca de sua bunda na "calçada da sarjeta". Para alguém achar isso engraçado, é preciso que ele esteja negando uma poderosa fantasia de ser atriz num filme pornô ou musa de um cárcere masculino. Para maior clareza: essas fantasias são ótimas, a negação "engraçada" dessas fantasias é sinistra e assassina.

Renata Carvalho, no fim da peça, lembrou que domingo retrasado, no parque do Carmo, em São Paulo, morreu Yasmin Montoy, travesti e prostituta de 20 anos. Só falaram disso alguns sites e o "R7". Os moralistas devem achar certo. E os "engraçados" devem achar engraçadíssimo.


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