Folha de S. Paulo


'Transtornos' de gênero e nome social

A expressão "transtornos" de gênero não é boa, por duas razões. Ela reúne experiências excessivamente diferentes. E essas experiências são sofridas não por serem transtornos, mas pelos transtornos que elas causam nos que defendem a suposta "normalidade".

Talvez os verdadeiros transtornos de gênero sejam as reações de quem se sente ameaçado pela descoberta de que podemos ter sexo feminino e sentir intimamente que somos homens, e ter sexo masculino e sentir intimamente que somos mulheres.

É uma experiência sempre sofrida pelas inúmeras formas da rejeição social (estupro e abuso sexual, recusa ou perda de emprego, escárnio etc.).

Os travestis e transgêneros homem-para-mulher são os mais perseguidos e também têm o mais alto índice de estupros e abusos sexuais.

Claro, muitas pessoas que vivem uma indefinição de gênero passam despercebidas. Um indivíduo de sexo masculino pode apenas usar calcinhas por baixo da calça social; indivíduos de sexo feminino saem em grupo para uma noite entre "caminhoneiros". Alguns/algumas esperam estar em casa para se vestir no gênero que é o deles. Outros, enfim, tentam viver seu gênero em tempo integral, por diferente que seja de seu sexo.

Esses últimos recorrem a um nome social que corresponde ao gênero segundo o qual eles vivem. No seu prédio, nas repartições, na hora de assinar um cheque ou de marcar uma visita médica, eles evitam assim o constrangimento de anunciar um nome que contrastaria com o gênero que eles aparentam.

O nome social não é uma mudança de RG, mas é alguma coisa que protege contra o escárnio e a agressão.

De repente, um grupo de deputados evangélicos quer abolir o uso do nome social. Para eles, o cidadão ou a cidadã que vive num gênero diferente do seu sexo anatômico sempre terá que anunciar seu nome original. Acrescento: de modo que sempre seja zombado.

É um mistério: como é que alguém tem uma iniciativa dessa? De onde nasce a paixão de impor regras aos outros e de disciplinar a vida deles?

No Ocidente moderno (desde o fim do século 18), só é proibido, em tese, o que limitaria a liberdade do outro. À condição de não ferir ninguém, cada um e cada grupo podem se dar as regras que quiserem. Ninguém obriga os praticantes de suingue à monogamia, e ninguém obriga evangélicos a praticar suingue.

Como é possível, então, que surjam paixões de disciplinar os outros? E por que isso acontece sempre em matérias que tocam ao sexo, aos prazeres a ao gozo?

O que pensa a "padaria" sobre os travestis? Faça o teste: eles são "sem vergonha" –o que é bizarro, pois parece significar que os "normais" só não seriam travestis por vergonha, não por falta de vontade.

Ok, você acha que a "padaria" não é um argumento? Aceito. Vamos a santo Agostinho, Livro 1, Cap. 7 das "Confissões": "Observei de meus próprios olhos um bebê tomado pela inveja: ele nem falava ainda e não podia, sem desvanecer-se, pousar seu olhar sobre o espetáculo amargo de seu irmão de leite", que estava sugando o seio materno.

A inveja que Agostinho observa não é ciúmes da mãe e de seus cuidados, é uma inveja "primária" (como dirão os psicanalistas), ou seja, uma espécie de impossibilidade de tolerar a ideia de que o outro possa gozar mais do que eu.

Na verdade, o outro da cena agostiniana faz apenas o necessário para se alimentar. Quem supõe que ele esteja gozando é minha inveja.

A inveja primária (os psicanalistas dirão que ela é de antes do Édipo) é um dos sentimentos que mais sobrevivem e dão forma às relações entre adultos. Um exemplo? É difícil entender o que acontece entre uma geração e seus descendentes sem recorrer à cena de Agostinho: o que os pais querem é (entre outras coisas) que os filhos não gozem mais do que eles.

Enfim, uma das grandes estratégias defensivas da inveja é a desvalorização: o irmãozinho lá, sorvendo leite, é uma alma perdida, um desviante, um criminoso... Arranquem esse menino de lá, pelo amor de Deus.

Chegamos à conclusão: disciplinar significa reprimir no outro o que suponho que seja seu gozo. A origem da paixão de disciplinar está na inveja primária: ele não terá mais do que eu, não gozará mais do que eu.

Só para lembrar: para Agostinho, a inveja primária era a demonstração de que os bebês (já invejosos) nascem tão ruins quanto os adultos. E, como os adultos, precisam ser salvos. Haja Graça divina.


Endereço da página: