Folha de S. Paulo


Sem estresse

As catástrofes coletivas deixam marcas internas –às vezes piores do que a destruição de cidades e países.

Um terremoto, um atentado, uma guerra, sobreviver numa cidade da Síria de hoje ou num orfanato sádico e miserável: a lista é infinita e diversa das circunstâncias em que milhares ou centenas de milhares são vítimas de uma violência para a qual não encontram uma explicação –nenhuma resposta para o famoso "por que isso acontece comigo?".

Isso, aliás, talvez esteja na origem de qualquer trauma: uma ferida que não sara inteiramente, por ser o resultado de um mal que não conseguimos integrar na nossa história.

Por exemplo, o desastre do Katrina, na Louisiana, em 2005, foi "incrementado" por injustiças e erros políticos sem os quais os efeitos do furacão seriam menores.

Apesar de isso ser verdade, em primeira e última instância, o Katrina foi uma violência natural, que, como notava Voltaire sobre o famoso terremoto de Lisboa em 1755, não se explica por intenções ocultas (nem que sejam divinas).

Na época do Katrina, a American Counseling Association fez um apelo a seus membros para que fossem a Nova Orleans e atendessem as vítimas, de forma a evitar as piores sequelas psíquicas do desastre.

Suponhamos que existam palavras para fazer com que alguém, depois de perder seus próximos e seus pertences, não sofra de transtorno de estresse agudo ou de transtorno de estresse pós-traumático.

Imaginemos que todos os psicoterapeutas dos Estados Unidos tivessem respondido ao apelo da ACA e concordassem sobre as técnicas certas nessa ocasião. Ainda assim, os efeitos de uma tamanha operação preventiva seriam limitados.

Por isso, há anos, existem pesquisas que procuram um remédio para evitar que as vítimas de uma catástrofe repitam sua experiência para a vida toda –na angústia, no medo e nos pesadelos de suas noites.

Não seria bom? Imagine: os sobreviventes do exílio forçado, náufragos, desesperados, enlutados, chegam às praias da Grécia ou da Itália, e eis que podemos medicá-los de tal forma que a memória do horror pelo qual passaram não se consolide –um bom anestésico faz isso, aliás: apaga a lembrança da dor, caso ela tenha se manifestado.

As pesquisas feitas até aqui testaram três tipos de substâncias: os antidepressivos (previsivelmente ineficientes nesse caso), os bloqueadores-beta (propranolol) e a hidrocortisona. Esses dois últimos fármacos foram testados porque existem indícios de que ambos tornem mais difícil a consolidação e a volta de memórias penosas. Portanto, argumenta-se, se fossem administrados logo depois de eventos com potencial traumático, poderiam prevenir os futuros transtornos de estresse.

A revista "The Lancet Psychiatry"(vol.2, maio de 2015) acaba de publicar uma revisão das pesquisas sobre esse assunto. Só a hidrocortisona pareceu ter algum efeito na prevenção dos transtornos de estresse pós-traumático.

Talvez (sublinhando o "talvez"), se administrada dentro do primeiro mês, ela dificulte a volta de lembranças emocionalmente perigosas.

Em geral, acredito que os efeitos de um evento passado tendem a melhorar quando a gente se esforça para se lembrar, e não para se esquecer. Apesar disso, lendo o artigo, estava pronto a admitir que, em caso de catástrofe, talvez uma pílula do esquecimento fosse uma boa medida coletiva de prevenção.

Mas eis que surgiu a pergunta (e a visão profética): o que aconteceria no dia em que fosse comprovado que a hidrocortisona é preventiva do trauma? Será que seu uso ficaria limitado às grandes catástrofes? Ou será que todos nós (com a cumplicidade das companhias farmacêuticas) recorreríamos à hidrocortisona a cada vez que fôssemos tentados por uma expressão como "melhor esquecer"? Ou "sem estresse"?

Um luto iminente? Hidrocortisona. Perda, separação, fracasso no vestibular, demissão? Claro, vou sofrer, mas, graças à hidrocortisona, a marca não ficará. O sofrimento escorrerá sobre meu corpo como água em cima das penas de um pato.

Agora, alguém poderia perguntar: não seria melhor assim? Respondo com outra pergunta: existe uma vida que seja interessante e que não seja muitas vezes traumática? Para ser mais claro: você gostaria de sair da infância sem as marcas de mil feridas nos joelhos?

Por mais que seja doloroso, "estressante" e, quem sabe, feio no espelho, o emaranhado das cicatrizes de nossos traumas é, simplesmente, nosso rosto.


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