Folha de S. Paulo


Século 20

Vejo uma fotografia com as proporções inconfundíveis do negativo quatro por seis de uma Ferrania Rondine, que era minha câmera –parecida com uma pequena Rolleiflex.

Quem tirou a foto conseguiu que nem eu nem meu irmão estivéssemos realmente no quadro. Eu, aos nove anos, do lado esquerdo da imagem, sou cortado pela metade, verticalmente. Meu irmão, 14, do lado direito, é também cortado, embora sua cabeça esteja inteira e o seu torso apareça.

Entre nós, como pano de fundo, há uma inscrição gravada numa pedra; estamos na posição tradicional da fotografia-souvenir, na frente da lápide e de costas para ela.

O texto é em duas línguas (uma deve ser bósnio, a outra é inglês): deste exato lugar, Gavrilo Princip, em 28 de junho 1914, avançou arma na mão e assassinou o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro do império austro-húngaro, e sua mulher Sofia.

Em Sarajevo, nos anos 1950, os turistas eram raros, e um curioso se insinuou na foto, entre nós. O autor do instantâneo (minha mãe?) privilegiou o curioso, personagem pitoresco com um fez turco na cabeça: ele sorri –não tem como imaginar o ódio que, menos de 40 anos depois, dividiria Sarajevo entre bósnios e sérvios.

Por alguma explicação do meu pai, sei que, em 1914, a Mão Negra (organização secreta sérvia) tramava a morte do arquiduque, mas Princip se encontrou por acaso ao lado do carro imperial e agiu sozinho. Deu dois tiros e matou o casal. Foi o pretexto para que milhões de soldados se massacrassem pelos campos do continente, durante quatro anos.

Na foto, meu irmão levanta um pouco a mão direita; não acho que quisesse imitar o gesto de Princip, mas ele parece estar em movimento: é bonito como um adolescente que acredita no mundo e tem algo para fazer, um adolescente que encara a vida de peito aberto.

Meu pai detestava a carnificina inútil da Primeira Guerra Mundial. Também, ele achava ridículo qualquer nacionalismo, e Princip era um nacionalista sérvio.

Em compensação, ele tinha simpatia pelos rebeldes em geral; poucos anos depois, ele mesmo nos levou para ver um filme de Jiri Krejcik que se chamava, na Itália, "Il Principio Superiore": era a história de estudantes tchecos que se envolvem num atentado contra Reinhard Heydrich, o Reichsprotektor nazista da Boemia ocupada.

Eles são presos, e, na hora em que eles são supliciados, o professor de filosofia fala para a turma atônita: "Em nome de um princípio moral superior, o ato de matar um tirano não deve ser considerada como um assassinato".

Ao mesmo tempo, bem naquele dia em Sarajevo, meu pai disse algo que tornou o arquiduque Francisco Fernando simpático: ele amava Sofia, insistira em se casar com ela, que era detestada na corte de Viena.

Não podendo frequentar a corte com a mulher, a levava sempre consigo quando visitava outros países. Morreram juntos, em suma, por amor.

Meu irmão e eu tivemos em comum a experiência de sermos expostos, desde pequenos, às maravilhas das contradições humanas –pelo meu pai e pelo século.

Além disso, frequentamos as mesmas escolas públicas. Tínhamos cinco anos de diferença, e os períodos de convivência escolar eram breves.

Tenho uma imagem dele num corredor do Liceo Carducci, em Milão; ele estava no último ano, eu, no primeiro. Naquela época, o movimento estudantil era considerado um resto corporativista do fascismo.

O certo era militar nos partidos, que tinham, quase todos, seções dentro de cada escola.

Os estudantes usavam o distintivo de seu partido na lapela do paletó (o uso da gravata era obrigatório –o que não atrapalhava ninguém, pois ninguém queria ser criança, todos queríamos crescer).

Meu irmão era republicano –usava uma folha de hera na lapela, bem verde, esmaltada. Por pouco tempo, frequentei com ele a seção do partido republicano.

No fim, entrei no partido liberal, pela leitura de Piero Gobetti, militante liberal assassinado pelos fascistas nos anos 1920 (só mais tarde me tornaria socialista e comunista).

Admirava meu irmão nas reuniões de seu partido: sua fala séria, a tentativa de entender os acontecimentos do dia um pouco além do óbvio, apesar da cortina de fumaça (que não era só uma metáfora: todos fumávamos além da conta).

Desde domingo, essas duas imagens não me deixam. E me parece que poderia explicar o século passado só com elas. Domingo passado, morreu meu irmão.


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