Folha de S. Paulo


O que me ofende

Domingo passado, nas páginas da "Ilustríssima", houve um debate (imperdível) entre Slavoj Zizek e João Pereira Coutinho.

Zizek começou bem, mas terminou repetindo uma das mais persistentes trivialidades culturais dos últimos dois séculos: o Ocidente é hoje decadente, faltam-lhe valores –por isso, ele só poderia ser salvo por uma nova esquerda radical, animada por ideais fundamentais.

Que cansaço. Não precisamos de fundamentalismo, novo ou antigo que seja. Ao contrário: nossa grandeza está na capacidade (recém e mal conquistada ainda) de conviver sem dramas e sem mentiras com a tragédia humana, que é a falta efetiva de fundamentos. Não há verdades absolutas, não há sentido da história, nem significado da existência: viva-se (dignamente) com esse silêncio.

As religiões, aliás, poderiam ser definidas assim, como os dramas e melodramas fundamentalistas inspirados pela condição trágica de não termos fundamentos.

Inspirado pelo espírito de "Charlie Hebdo", lembro-me que cresci numa época em que não existiam jeans, e a flanela do pós-guerra não era grande coisa.

A gente crescia rápido, e as calças duravam pouco; mesmo assim, era preciso trocar regularmente o cavalo ou fundo das calças. Em italiano, o cavalo se chama "fondello". "Fondello" se confundia, para mim, com "fondamento", preparando meu futuro psicanalítico, pelo qual fundamento é o lugar onde a gente se senta, entre a zona do sexo e a das funções corporais menos nobres.

Enfim, por sorte, João Pereira Coutinho respondeu a Zizek: o que Zizek enxerga como nossa "fraqueza" é nossa força. Não é preciso injetar um novo fundamentalismo no Ocidente. Ao contrário, é preciso esperar que os fundamentalismos que sobram passem por uma crise comparável àquela que produziu a cultura moderna, a nossa. Que crise foi essa?

Fala-se de liberdade de expressão como se fosse a mesma coisa que a liberdade de consciência. Prefiro fazer uma diferença.

A liberdade de expressão é um direito político pelo qual é possível lutar, mesmo que o preço seja alto. Já a liberdade de consciência é mais difícil de ser conquistada. Ou seja, os censores podem cortar sua cabeça, mas essa questão só surge se você faz um uso autônomo da mesma.

Os fundamentalismos podem inibir a liberdade de expressão, mas sua grande esperança é controlar a liberdade das consciências –fazer que todos pensem igual.

A conquista da modernidade ocidental não é tanto a liberdade de expressão quanto a liberdade da consciência. Na cristandade, isso aconteceu mesmo com a Reforma protestante, quando os cristãos começaram a pensar que talvez eles pudessem dialogar livremente com Deus, em seu foro íntimo, sem a mediação da Igreja.

Enfim, a modernidade não é cômoda: para ela, a própria ausência de fundamentos (substituídos pelos "fondelli" de minha infância) é o supremo valor positivo. Claro, os fundamentalismos preferem considerar que essa ausência de fundamentos seja uma fraqueza moral, uma degenerescência que não merece o respeito de ninguém. Errado: ela é o grande valor positivo moderno.

O papa Francisco disse, na semana passada, que "não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros". Concordo, mas achei que ele estava de brincadeira.

Não vou me deter na época em que os papas queimavam vivas, em Campo dei Fiori, as pessoas que pensavam que talvez Deus fosse um pouco diferente do que reza o catecismo. Não vou me deter nisso, embora seja um hábito cuja lembrança me ofende um pouco. Mas vamos aos nossos tempos.

Tive sorte, encontrei salesianos, jesuítas e dominicanos cuja amizade ainda me honra. Mas, no conjunto, durante a educação religiosa de minha infância, fui ofendido por inverdades, primariedades, estupidez moral e pensamentos sem dignidade teológica.

Me ofende que uma adúltera seja apedrejada ou que, na baboseira do sermão de domingo, um divorciado seja excomungado ou um gay considerado doente. Me ofende que pessoas, a cada dia, sejam perseguidas e trucidadas pelas suas escolhas de vida amorosa e de prazeres. Assim como me ofende e ofende minha ideia de Deus imaginar que ele se importe com nosso uso (ou não) de preservativos.

Ia esquecer. Também me ofendem os programas noturnos de pastores evangélicos expulsando demônios. Por sorte, no mesmo horário, tem canais pornôs, que são muito ruins, mas menos ofensivos –desculpe, leitor, esse foi, de novo, o espirito de "Charlie".


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