Folha de S. Paulo


Ninguém pode se ausentar...

A carta simples e registrada tem a mesma previsão de entrega, mas a registrada você pode rastrear. Sem contar que existe a carta registrada com Aviso de Recebimento (AR), "na qual o destinatário assina um documento ao receber, que depois é enviado para o remetente" (assim explicam os Correios).

Imagino que o primeiro uso da registrada com AR tenha sido jurídico: o aviso assinado prova que o destinatário foi devidamente informado.

Mas o uso afetivo deve ter vindo logo depois. Você escreve a um ser amado; cinco dias leva a sua carta para ir; digamos, dois dias para ele escrever; mais cinco dias para a resposta chegar até você"¦ A partir de quando você vai se desesperar, achando que ele escolheu o silêncio? Com o AR, no mínimo, você sabe quando a missiva foi entregue.

Pode ser que o outro não responda e desperdice assim a chance de um grande amor, mas não será por causa do desserviço do correio.

O telegrama também garantia a entrega, mas, justamente, tinha o defeito de ser telegráfico e era indiscreto: funcionários desconhecidos leriam seu texto, para poder transmiti-lo.

O e-mail aboliu o tempo de viagem das missivas. Mandou, chegou. Mesmo assim, seu percurso encontra armadilhas. As desculpas clássicas (desculpe, não acesso meu computador há dias) não valem mais, agora que o e-mail chega ao smartphone. Mas ainda é possível dizer que seu e-mail caiu no anti-spam, ou, então, eu me confundi, não entendi que era seu e apaguei sem querer. Por isso, aliás, há os que mandam um e-mail e logo telefonam para perguntar: recebeu?

O telefone evoluiu na mesma direção. Houve a chamada interurbana e internacional diretas, sem reserva prévia; houve a secretária eletrônica, e há, enfim, o celular. Não contentes de alcançar o outro e de estarmos disponíveis em qualquer momento, lamentamos que a tecnologia GPS não nos diga também onde está nosso interlocutor; por isso, imagino, quem liga para nosso celular, começa por perguntar, quase furioso por não saber: onde você está?

De qualquer forma, a ideia de que alguém possa ser inalcançável por algum tempo se tornou intolerável. O mesmo vale para a ideia de que a gente possa estar fora de alcance durante as duas horas de um filme, de uma peça de teatro ou de uma aula.

Nossa disponibilidade ininterrupta talvez revele um tremendo medo de sacrificar sonhos e desejos (que nem sabemos quais seriam), porque deixaríamos passar cavalos encilhados (que passam uma vez só: ligaram, você não atendeu, já foi).

Mas talvez haja, sobretudo, nessa tentativa de estarmos sempre presentes caso alguém nos contate, uma espécie de horror fundamental da ausência, que vale para nós e para os outros. Ninguém é autorizado a "não estar"; nem nós, nem os outros, nem Deus. O deus dos evangélicos, que interviria na vida dos fiéis e se manifestaria quando invocado, é mais próximo de nossa época do que o deus um pouco escondido e silencioso dos católicos e das denominações protestantes tradicionais.

Não sei se inventamos, aos poucos, a tecnologia que corresponde à nossa necessidade de estarmos e de ter o outro sempre ao alcance, ou se a tecnologia, mudando, fez com que nos acostumássemos à presença constante de todos, sempre alcançáveis.

Seja como for, nossa marcha avança na direção de uma presença sem silêncios e sem esconderijos. A última novidade do WhatsApp é um bom exemplo. No WhatsApp, que está se tornando hoje o sistema de diálogo mais popular, você pode saber imediatamente se sua mensagem foi recebida e lida. Não adianta ficar calado: eu sei que você me leu.

Um leitor, Eduardo Monteiro, sugere que eu fale de como o sistema carcerário "molda a sociedade". Pois é, o sistema em que o preso seria sempre visível (como os cidadãos das cidades vigiadas pelas telecâmeras) transforma-se num sistema em que devemos estar sempre alcançáveis, caso a Justiça queira nos prender.

Uma pequena estratégia de resistência. Aparece, na tela de seu smartphone, a notificação de que chegou uma mensagem de WhatsApp. Você quer um pouco de tempo para pensar na resposta, ou seja, quer lê-la sem que o outro saiba que você a leu. Pois bem, coloque seu celular em modo avião, abra e leia –enquanto você permanecer em modo avião, nenhuma notificação será encaminhada ao seu correspondente.

Moral da história: o avião é mesmo um maneira eficaz de se afastar, de vez em quando.


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