Folha de S. Paulo


Hipócritas ou crentes?

Imaginemos que você tenha uma preferência exclusiva para uma sexualidade promíscua e coletiva: em outras palavras, você só gosta de orgias com desconhecidos ou quase. Com apenas uma pessoa, a coisa, para você, não tem graça alguma.

Essa fantasia, que anda pela cabeça de muitos homens e mulheres, não é quase nunca exclusiva, mas, pela necessidade da nossa parábola, suponhamos que seja.

Alguns dirão que seu gosto sexual não é conciliável com o funcionamento da família tradicional (embora, sobre esse ponto, haja controvérsias). Outros dirão que seu gosto ofende a moral e que, "portanto", ele deve ser proibido por lei —isso, embora você só se envolva com pessoas maiores e capazes de dar seu consentimento.

Então, você, com esse gosto quase exclusivo, pode escolher viver no país A ou no país B. Os dois países têm uma composição parecida: um terço de indiferentes, um terço de crentes e um terço de libertários.

Os indiferentes, como diz seu nome, não estão nem aí.

Os crentes tendem a pensar que o que eles consideram pecado deveria ser proibido pela lei; assim, "generosamente", eles ajudariam os "pecadores" –ou seja, forçariam quem discorda deles a viver como eles acham certo.

Os libertários pensam que tudo deve ser permitido, nos limites do Código Penal e à condição que seja respeitada a liberdade de cada um.

Em síntese e por exemplo, o crente acha que sexo promíscuo e em grupo é pecado e, "portanto", quer que o Estado impeça sua prática, feche os lugares que o favorecem etc.

Ao contrário disso, você, que é libertário, acha que o crente deve poder seguir sua religião, não deve ser "curado" de sua crença, nem obrigado a participar de nenhuma orgia. Ou seja, para você, libertário, o Estado deve interferir na vida privada só para certificar o consentimento de todos, proteger o menor e garantir absoluta igualdade de direitos para todas as diferenças.

Agora, imagine que os governantes do país A sejam crentes, e os governantes do país B, libertários. Podendo escolher entre os dois países, você, com seu gosto sexual exclusivo, escolheria o B, não é?

Pois é, engano: tanto no A como no B, a prática sexual do seu gosto está proibida por lei. Como pode ser? O que aconteceu?

No país A, a explicação é simples: os governantes são crentes e representam os crentes que os elegeram.

Mas, no país B? Você imaginava que os governantes libertários não gostassem de regular a vida concreta de seus cidadãos. Talvez você tivesse razão, mas acontece que os ditos governantes acham que eles precisam da aprovação dos crentes de seu país para se eleger e, portanto, eles governam como crentes (confiando que, mesmo assim, eles não perderão o apoio dos eleitores libertários, que são os trouxas da história).

Em suma, para você, viver no país A ou no B seria a mesma coisa, pois nos dois sua fantasia está proibida. A diferença é que, no país B, isso seria efeito de governantes que escondem o que pensam e agem de maneira a receber e conservar o voto dos crentes. Enquanto, no país A, isso seria efeito de governantes que são mesmo crentes.

Moralmente, você pode até achar mais simpáticos os governantes crentes, que não mentem e acreditam no que fazem. Só que no lote dos governantes crentes há também os que acham bom apedrejar adúlteras, por exemplo.

Tente, portanto, pensar só em você mesmo: você estará mais livre com governantes crentes ou com governantes hipócritas?

O drama é que você seja obrigado a essa escolha miserável, entre hipócritas e crentes. Será que não existem governantes que nos tratem como gente grande?

Parece que não existem governantes realmente laicos (e tanto faz que, em sua vida privada, eles sejam religiosos ou não: laico, aqui, significa decididos a garantir a liberdade de pensamento e comportamento de todos).

Para se eleger, o libertário renega suas ideias e se pavoneia em manifestações constrangedoras de devoção por todo tipo de crença e culto. De fato, até que surjam, um dia, políticos libertários não hipócritas, os libertários não terão expressão política, pois os políticos crentes se comportam como crentes, e os políticos libertários, também.

Caso seja preciso: qualquer semelhança da parábola dos hipócritas e dos crentes com a situação atual no Brasil em época eleitoral NÃO é meramente uma coincidência.


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