Folha de S. Paulo


Depois da Flip

Passei o fim de semana em Paraty, na Flip. Fora o cuscuz de tapioca e o bolo de aipim, que são vendidos pelas ruas da cidade, o que não esquecerei da Flip deste ano?

1) O encontro com Francisco Lellis, que eu não via há quase 30 anos. Lellis, historiador e cozinheiro, lançou em Paraty, no Senac, um bonito livro de história da gastronomia, escrito com André Boccato, jornalista e também cozinheiro, "Os Banquetes do Imperador, Menus Colecionados por Dom Pedro 2º" (Senac).

Lellis foi meu primeiro (e único) professor de português, em Paris (onde ele continua morando). Ele me dava aulas particulares na época de minhas primeiras viagens ao Brasil, nos anos 1980, e me transmitiu um carinho pela língua portuguesa sem o qual nunca eu teria chegado a gostar da língua que hoje me parece minha.

2) No fim da Flip, um amigo me perguntou qual seria, ao meu ver, o livro mais duradouro desta safra.

Às vezes, o efêmero é tão importante quanto o duradouro (nas relações amorosas, a duração não é garantia de qualidade). Essa reserva feita, na safra deste ano, o livro que, ao meu ver, mais durará será "Longe da Árvore", de Andrew Solomon (Companhia das Letras), que é uma extraordinária reflexão sobre nossa capacidade (ou incapacidade) de aceitar que nossos filhos sejam diferentes de nós.

Valorizamos a diferença, mas é difícil dizer o quanto toleramos que nossos rebentos não correspondam às nossas expectativas.

Na volta de Paraty, li a notícia de um casal australiano que recorreu a uma barriga de aluguel tailandesa; a mãe de aluguel teve gêmeos, um dos quais com síndrome de Down; o casal trouxe de volta para a Austrália só a menina, que era "normal" (http://migre.me/kS6jk ).

Fui para a Flip para um bate-papo na Casa Folha; o título previsto era: "Desejo, Obediência e Rebeldia". De fato, prevaleceu a vontade de conversar livremente. Um tema acabou sendo, justamente, a dificuldade em aceitar que os filhos sejam "seres sexuados" (mais "sexuados" do que a gente?).

Por que aceitamos, cada vez mais, que filhos e filhas tragam namoradas e namorados para casa, inclusive para dormir? Será que o pretexto da segurança é a única razão de nossa "permissividade"?

Há outra hipótese. Talvez a gente encoraje nossos adolescentes a viver paródias de casamentos como um jeito de conter e normalizar a vida sexual deles: vivam "casados" na casa dos pais, talvez, assim, vocês não sejam tentados por sexualidades furiosas e "animadas" além da conta.

Enfim, para desenvolver o tema do bate-papo, eu tinha preparado algumas ideias. Menciono duas, para não perdê-las.

1) Desejar, hoje, parece ser sempre bom. E não desejar seria uma espécie de pecado mortal. Isso, talvez, porque a insatisfação crônica do desejo é o que temos de melhor contra a finitude da vida. Se eu parar de desejar (qualquer coisa —o que importa é que o desejo não se apague), o que me protegerá da morte? Em nome de que pedirei mais tempo de vida?

Meditar sobre a brevidade da vida e a proximidade da morte (exercício aconselhado até dois séculos atrás) saiu de moda. Claro, a brevidade da vida continua igual: evitamos apenas a meditação sobre ela.

2) O desejo está na rebeldia ou na obediência? Faz meio século que vivemos uma tremenda valorização da rebeldia. É como se, em nome do desejo, só fosse possível se rebelar; ou como se houvesse desejo só na transgressão —aliás, como se a transgressão fosse a prova de que ainda estamos desejando.

Curiosamente, há muitos casos em que a obediência é uma condição necessária para realizar o desejo da gente.

Primeiro, é possível que alguém tenha o desejo de obedecer. Segundo, obedecer a um terceiro pode ser necessário para a gente realizar um desejo que, sem isso, a gente não se permitiria (a obediência, nesse caso, funciona como uma autorização e uma "desculpa").

A grande questão da psicologia social desde os anos 1950 pode ser resumida assim: quem pratica o horror em nome de uma regra, será que ele gosta de obedecer e está disposto a fazer qualquer coisa para satisfazer seu desejo de obedecer? Ou será que ele obedece à regra porque a regra é o pretexto que o autoriza a praticar o horror?

A questão se aplica a qualquer um que pratica o horror em nome de uma regra —do guarda de campo de concentração até o pequeno funcionário de uma repartição pública que maltrata a velhinha que está na fila desde as primeiras horas do dia.


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