Folha de S. Paulo


Quem é menino e quem é menina

"Eu, Mamãe e os Meninos", escrito, dirigido e interpretado por Guillaume Gallienne, é uma boa ocasião para pensar sorrindo.

No filme, que foi um grande sucesso na França (ganhou cinco prêmios César), Gallienne conta sua história: a de um jovem que cresceu, digamos assim, "efeminado", porque a mãe esperava que ele fosse a filha que ela não teve -é difícil não responder a essa expectativa, e o menino acaba procurando na mãe seu maior, se não único modelo.

O título original francês é o grito da mãe: "Os meninos e Guillaume, para mesa!" —deixando claro que, para ela, Guillaume não fazia parte do conjunto dos meninos.

Na saída do cinema, várias questões (garanto: sem spoiler).

1) Guillaume cresce convencido de ser uma menina. Ele prefere tocar piano e conversar a praticar equitação, caça ou qualquer esporte. Mas essa identidade de menina é um estereótipo criado e imposto pela mãe —uma espécie de contraveneno que ela usa para se proteger dos filhos ("os meninos") e do marido. De fato, há maneiras de ser menina muito diferentes da que a mãe de Guillaume parece destinar ao seu filho.

2) A obra (hoje esgotada) de Elena Gianini Belotti (1973) sobre a "fabricação" das identidades de gênero continua importante. Tudo bem, Guillaume é o efeito (a vítima?) do desejo de sua mãe, que quer uma filha. Mas pergunto: "os meninos", dos quais ele não faz parte, será que eles não são as vítimas do desejo do pai deles, que quer dois filhos? Será que é "natural" para menino preferir o rugby à leitura de Jane Austen? Ou será que essas preferências dos meninos, no fundo, são tão forçadas (pela expectativa do pai) quanto as preferências que Guillaume deve à influência de sua mãe?

3) A história de Guillaume ilustra o poder extraordinário (embora não ilimitado —como o filme mostra) da palavra e do desejo maternos na hora de inventarmos e construirmos nossas identificações e nossos hábitos.
De onde vem esse poder? A mãe, em tese, é a que está lá desde o começo, e há uma chantagem de fato, implícita, inevitável: no início da vida, nenhum amor parece tão necessário quanto o materno —para sobreviver, simplesmente. Então, melhor que a mãe goste da gente, não é?

4) Em geral, acreditamos adquirir hábitos sem querer, à força de repetir comportamentos convenientes, esperados etc. Mas esse "sem querer" é quase sempre aparente: frequentemente, adquirimos hábitos por um treino proposital —como alguém que, na primeira tragada, não quisesse começar a fumar, mas se tornar desde já fumante e, logo, queimasse um maço por dia, mesmo não gostando, "para se acostumar".

Na internet, há milhares de vídeos de "treino" de vários comportamentos sexuais. Não são vídeos explicativos (tipo: faça assim, pegue por baixo ou se deixe pegar por cima), mas declaradamente "hipnóticos": a pretensão é que, ao contemplá-los, você seja sugestionado (geralmente, eles propõem uma rápida sucessão de imagens com o fundo sonoro de uma voz cativante). Por que alguém precisaria ser sugestionado para realizar atos que correspondem ao que ele deseja?

Fácil: desejamos coisas que, às vezes, o pudor, o desgosto ou o medo não nos permitem realizar —coisas que povoam nossos devaneios, mas contra as quais resistimos tudo o que podemos. Os vídeos hipnóticos prometem isto: você se tornará capaz de fazer o que você deseja e não consegue se permitir.

Curiosamente, a maior categoria de vídeos hipnóticos na net talvez seja a dos vídeos para homens que queiram se "feminizar", ou seja, se permitir os hábitos sexualmente mais passivos possíveis ("sissyfication", é a palavra-chave).

Esses vídeos não convertem ninguém. Eles só têm interesse para quem já deseja intensamente o que eles mostram; mesmo nesse caso, não sei se eles ajudam alguém a ultrapassar as inibições que o impedem de realizar seus devaneios.

Mas a simples existência desses vídeos mostra que adoramos encontrar nossos próprios desejos sob forma de ordens que vêm de fora: por favor, alguém me mande fazer o que quero fazer e não consigo me autorizar a fazer. É um padrão que explica muitas coisas: desde a complacência com ordens que poderiam (e deveriam) ter sido desobedecidas até a facilidade com a qual acusamos as mães (sempre elas) por ter nos mandado desejar "o que não queríamos". Será mesmo que não queríamos?


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