Folha de S. Paulo


A crise faz o brasileiro idealizar um passado que não vale saudade

Todo o formidável progresso dos últimos 50 foi incapaz de tornar o brasileiro mais feliz do que se achava meio século atrás, por incrível que pareça.

É o que mostra pesquisa do excelente Centro Pew (Estados Unidos): para 49% dos brasileiros pesquisados, o país estava melhor no final dos anos 60 do que hoje. Só 35% opinaram o contrário. Os restantes responderam não ver diferença, para melhor ou para pior, entre aquela época e agora.

Não é uma constatação que valha só para o Brasil: dos 38 países pesquisados, em apenas 20 a maioria preferiu a atualidade aos anos 60, o que, para o próprio Pew, soa como insanável contradição.

O relatório que acompanha a pesquisa lembra o óbvio: "Há 50 anos, o mundo era um lugar muito diferente. Os Estados Unidos e seus aliados estavam envolvidos em uma Guerra Fria com a União Soviética, computadores pessoais e telefones celulares eram material de ficção científica, e boa parte da população mundial ainda não havia experimentado melhorias substanciais em expectativa de vida e bem-estar material".

Cabe lembrar ainda que 1968 foi o ano em que explodiu praticamente no mundo todo a insatisfação de um juventude frustrada. No Brasil, por exemplo, 1968 foi o "ano que não terminou" para remeter ao livro clássico de Zuenir Ventura.

Evandro Teixeira - 26.jun.1968/Folhapress
A 'Passeata dos Cem Mil', ato realizado no Rio contra a ditadura militar em junho de 1968
A 'Passeata dos Cem Mil', ato realizado no Rio contra a ditadura militar em junho de 1968

Foi também o ano em que a ditadura militar emitiu o Ato Institucional número 5, o mais selvagem instrumento de arbítrio da história brasileira.

O brasileiro estava impedido de eleger o presidente, os governadores e até os prefeitos de capitais, havia censura à mídia, que capava até noticiário sobre um surto de meningite, uma indicação de quão precária era a saúde no país.

Nem é preciso mencionar os avanços nas mais diferentes áreas, óbvios e inevitáveis com a passagem do tempo.

Como explicar, então, que quase a metade dos brasileiros tenha dito que estava melhor na época do que agora?

O Pew não dá essa resposta, mas fornece um pequeno indício ao falar de outros países em que é superior a porcentagem do que acham melhor o agora do que o ontem.

Diz o relatório: "Algumas das mais positivas avaliações de progresso sobre os últimos 50 anos são encontradas no Vietnã (88% dizem que a vida é melhor hoje), Índia (69%) e Coreia do Sul (68%) —todas sociedades que viram dramáticas transformações econômicas desde o final dos anos 60, para não mencionar o fim do conflito armado no caso do Vietnã".

O Brasil pode não ter conhecido explosão econômica similar à desses três países, mas também evoluiu bastante, não só economicamente como socialmente —embora continue sendo uma vergonha neste capítulo.

Como a pesquisa foi feita entre fevereiro e maio de 2017, período em que a economia ainda não havia saído do fundo de sua recessão, é possível que a memória do brasileiro acusasse tempos melhores no passado.

Na ditadura militar, a economia teve anos de crescimento expressivo.

É igualmente possível que o pico de corrupção revelado pela Lava Jato contribua para o sentimento de que no passado era melhor, até porque a ditadura, ao contrário da democracia, não investigava nada e ainda por cima impedia a divulgação de notícias a respeito.

Nos seis países latino-americanos em que foi feita a pesquisa, Brasil à parte, apenas no Chile há uma maioria (46%) que diz que hoje é melhor do que ontem, preferido por 38%.

Nos demais, dá-se o contrário: Peru (46% achavam os anos 60 melhor que hoje contra 29% mais felizes hoje); na Colômbia (54% x 27%, respectivamente): na Argentina (51% x 23%), no México (68% x 23%) e, na Venezuela (72% x 10%).

Neste último caso, a explicação é evidente: qualquer coisa, qualquer governo, é melhor do que o desastre provocado pela ditadura bolivariana. No México, a violência relacionada ao narcotráfico talvez explique a idealização do pasado.

A pesquisa foi feita com 40.448 pessoas, em 37 países. Um levantamento separado realizou-se nos Estados Unidos, com 2.505 pesquisados, entre junho e julho de 2017.

Detalhe: no caso dos EUA, 41% preferiram os anos 60 x 37% que elegem a atualidade. Trump explica?


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