Folha de S. Paulo


Mentir, o renitente pecado que se comete, na ditadura e na democracia

Esteban Felix/Associated Press
O porta-voz da Marinha argentina, Enrique Balbi
O porta-voz da Marinha argentina, Enrique Balbi

As omissões da Marinha argentina no tratamento do caso do submarino San Juan ativaram na minha memória registros de comportamentos similares - e inaceitáveis - durante a Guerra das Malvinas (1982).

Para quem não acompanhou o caso do San Juan, rememoro: primeiro, a Marinha demorou para avisar que houvera uma explosão na área em que o submarino deveria estar. Depois, só nesta terça-feira (5), admitiu que o navio tivera "problemas similares" em setembro, dois meses antes do desaparecimento (entrada de água pelo sistema de ventilação).

Nas Malvinas, fui testemunha direta de manipulação semelhante. Antes de relatar o episódio, uma digressão: a própria guerra em si foi uma manipulação, no caso do sentimento nacionalista dos argentinos. Ocupar as ilhas Malvinas foi uma evidente tentativa de superar o desgaste da ditadura da época, que fracassara economicamente e promovera um morticínio selvagem de opositores.

Triste é verificar como o anzol do nacionalismo pesca até o público que deveria estar atento e vigilante. A ditadura já caminhava para o ocaso quando, em abril de 1982, mandou invadir as ilhas.

Eu era correspondente da Folha em Buenos Aires, mas estava em missão jornalística na América Central, cobrindo uma sucessão de eleições em meio aos conflitos internos. É claro que a Folha me chamou para regressar ao posto na Argentina, mas, enquanto acertava os voos, liguei para minha mulher (a família ficara em Buenos Aires) e ela me contou que o general-ditador de turno, Leopoldo Galtieri, estava sendo aplaudido nas ruas. Pensei: ela deve estar entendendo errado. Não é possível que um único argentino aplauda esse ditador fracassado.

Era verdade. Até os "Montoneros", o grupo peronista armado que combatia a ditadura e já estava semi-dizimado, entusiasmou-se com o ataque às Malvinas.

Devem ter imaginado que a conquista das remotas ilhas no Atlântico Sul representava o primeiro passo para o socialismo no mundo.

São parentes ideológicos dos grupos, como o PT, que apoiam a ditadura, igualmente fracassada e igualmente sangrenta, de Nicolás Maduro.

Mas o episódio que mais se assemelha ao do San Juan ocorreu quando a Royal Navy, depois da longa travessia do Atlântico, chegou às Geórgias do Sul, uma das três ilhas do arquipélago (as outras são as Malvinas e a Sanduíche do Sul).

Era um sábado, em uma época em que o jornal fechava muito cedo.

Como Buenos Aires fica a 600 quilômetros do ponto do continente mais próximo das ilhas, dependíamos para informações dos militares argentinos e, principalmente, da BBC, que acompanhava as tropas inglesas.

Corri para o Hotel Sheraton, no qual se instalara o centro de imprensa argentino. Estava praticamente deserto, atendido apenas por um oficial da Marinha. Precisava saber se os ingleses haviam ou não estabelecido uma cabeça-de-praia nas ilhas - o que seria obviamente decisivo para o desenlace da operação e, mais adiante, do conflito em si.

O oficial negou. Disse que a invasão fora repelida. Duvidei. Fiz a mesma pergunta uma dúzia de vezes, com formulações levemente diferentes, para ver se ele caía em contradição. Nada. Ou seus superiores mentiam para ele ou ele mentia para mim.

O resto é história. Os ingleses tomaram as Geórgias do Sul, logo em seguida as demais ilhas, humilharam os militares argentinos e, no ano seguinte, a ditadura caiu.

O que incomoda na comparação entre as Malvinas e o San Juan é esse entranhado hábito de mentir ou de omitir informações, na guerra e na paz, na democracia e na ditadura.


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