Folha de S. Paulo


Epidemia de assassinatos não é uma maldição, é um fracasso

Difícil dizer o que é mais grave, se o fato de o Brasil registrar em 2016 sete mortes violentas por hora ou se é a resignação com que a sociedade aceita essa realidade, que está longe de ser uma novidade.

O fato é que o brasileiro vive em permanente estado de sítio mental, de que dá prova um item da pesquisa do "Latinobarómetro" 2017, divulgado na semana passada: quando a pergunta é se o pesquisado tem medo de ser vítima de algum delito, só 7% dos brasileiros respondem "nunca".

É a pior colocação entre os 18 países em que é feita anualmente a pesquisa.

Para comparação: na Venezuela, uma espécie de cartão postal latino-americano da violência, são 9% os que respondem "nunca" à pergunta se temem ser vítima de algum delito.

Dá a impressão de que o brasileiro se sente amaldiçoado por alguma entidade maléfica, como se morrer violentamente ou sofrer alguma outra violência fosse destino imutável. Uma epidemia, talvez.

Todos os tipos de governo passaram pela União e pelos Estados —principais responsáveis pela segurança pública— e, com ditadura e democracia, com direita e esquerda, a violência só fez continuar. Ou, pior, aumentar, como se vê agora no levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que aponta crescimento de 4,7% dos assassinatos no ano passado, comparados com 2015.

É paradoxal que, enquanto a violência cresce, diminuem os investimentos em segurança pública (queda de 3% em relação ao ano anterior, 2015).

Mas, francamente falando, o problema não parece ser o de aumento ou redução do investimento por si só. É claro que não tem a menor lógica reduzir os investimentos quando a violência aumenta. Mas o problema maior é o bom uso dos recursos, o que não parece estar acontecendo no Brasil, a julgar pelos números do Fórum.

Há um evidente problema de adequação do aparelho policial ao crescimento da criminalidade, comprovação que também aparece no "Latinobarómetro": só 34% dos brasileiros dizem confiar na polícia. Está de todo modo na média latino-americana (35%), o que se entende: a epidemia de violência não é um fenômeno apenas brasileiro, mas regional.

A América Latina concentra apenas 8% da população mundial, mas nela ocorrem 38% dos homicídios no mundo. São 144 mil assassinatos por ano na região, 60 mil deles no Brasil.

Em maio, um conjunto de 32 organizações latino-americanas lançou a campanha "Instinto de Vida" com o objetivo de reduzir em 50% em 10 anos o número de homicídios em países da região, Brasil inclusive.

Os parceiros no Brasil são o Instituto Igarapé, o Instituto Sou da Paz, a Anistia Internacional Brasil, o Observatório de Favelas e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A campanha mostra que é um problema a ser enfrentado em diferentes frentes, não só a policial. Desigualdade, por exemplo, é fator de violência, assim como o desemprego juvenil (no Brasil o aumento de 1% no desemprego para homens leva a um salto de 2,1% nos assassinatos).

Um ponto que me parece essencial é o tráfico de drogas, que, segundo os cálculos da campanha, movimenta US$ 330 bilhões por ano e que tem "efeito corrosivo nas instituições policiais, judiciárias, penais e alfandegárias".

Está demonstrado que a guerra às drogas está sendo perdida e que urge pensar em alternativas.

Enfim, ou a sociedade abraça iniciativas como essa ou no ano que vem a manchete da Folha dará conta de mais de sete mortes violentas por hora.


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