Folha de S. Paulo


O 'american way of death', uma invencível compulsão nacional

David Becker - 1º.out.2017/Getty Images/AFP
Pessoas fogem após tiroteio em festival de música country em Las Vegas
Pessoas fogem após tiroteio em festival de música country em Las Vegas

A quem se surpreende ou se choca com a interminável sequência de assassinatos em massa nos Estados Unidos, sugiro a frase, indignada mas bem pés no chão, do rabino Yoseif Bloch, também blogueiro para o "Times of Israel".

"Não os deixe [os defensores das armas] agirem como se estivessem chocados quando armas concebidas para o único propósito de matar dezenas de pessoas são usadas para matar dezenas de pessoas".

Parece uma platitude, mas é o reconhecimento de que o amor dos americanos pelas armas de fogo acaba sendo o verdadeiro gatilho por atrás de atentados terroristas (sim, a palavra é essa) como o de Las Vegas.

Os números são absolutamente definitivos a respeito: os Estados Unidos, com menos de 5% da população mundial, têm cerca de 35% a 50% da posse de armas por civis, segundo relatório de 2007 da Pesquisa sobre Armas Pequenas, entidade suíça.

Naquele ano, havia 88,8 armas de fogo por 100 mil habitantes nos EUA, mais do que o dobro do país seguinte no ranking (a Noruega, com 31,3).

Consequência inescapável: os Estados Unidos têm também a maior porcentagem de homicídios por armas de fogo entre os países desenvolvidos. São 33.800 por ano ou 93 por dia, o que faz até o Brasil parecer menos sanguinolento.

Na comparação internacional, compilada pelo Council on Foreign Relations, os Estados Unidos, em 2013, registravam 3,54 homicídios por 100 mil habitantes. O, digamos, "pai" dos EUA, o Reino Unido, tinha escasso 0,06 (neste caso, o dado é de 2011, mas a diferença é tão brutal que não deve ter mudado significativamente depois disso).

Tudo somado, chega-se ao impressionante fato citado por Nicholas Kristof, meu colega no International Media Council do Fórum de Davos, em sua coluna desta terça-feira (3) em "The New York Times": "Desde 1970, mais americanos morreram por armas (incluindo suicídios, assassinatos e acidentes) do que a soma total de americanos que morreram em todas as guerras na história americana, a partir da Revolução Americana".

Todos esses números deveriam levar os EUA a reverem a famosa Segunda Emenda, a que assegura "o direito do povo de manter e portar armas", certo? Não há a menor chance: com bem mostrou a notável repórter que é Patrícia Campos Mello na Folha desta terça (3), mais de cem propostas para controlar o uso de armas foram derrubadas no Congresso, no período 2011/16.

Mesmo na improvável hipótese de que o novo massacre levasse a algum tipo de controle, parte do problema continuaria do mesmo tamanho: 34% dos 156 tiroteios com quatro ou mais vítimas, entre 2009 e 2016, foram praticados por pessoas que não preenchiam as condições para comprar e portar armas.

Há, pois, uma compulsão por elas e, em decorrência, pelo único uso delas, que é o de matar, como escreveu o rabino-blogueiro Yoseif Bloch.


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