Folha de S. Paulo


Plebiscitos curdo e catalão evidenciam o ressurgimento do tribalismo

O formidável avanço da globalização nos últimos muitos anos acabou desaguando no ressurgimento de um sentimento ancestral, o tribalismo.

Nesta semana, dois casos exemplares demonstram que as tribos estão vivas e querem armar sua própria tenda contra os "estrangeiros" que as circundam.

Jon Nazca/Reuters
Estudante com máscara protesta a favor da consulta sobre a independência da Catalunha em Barcelona
Estudante com máscara protesta a favor da consulta sobre a independência da Catalunha em Barcelona

Primeiro caso: os curdos. Aprovaram em massa (92%) a independência do Curdistão iraquiano. Os curdos são um dos poucos povos do mundo sem Estado próprio. Somam 35 milhões de pessoas espalhadas por quatro países (Turquia, Irã, Iraque e Síria, além da diáspora).

O voto teve um caráter romântico, bem descrito em texto para "El País" da extraordinária repórter que é Ángeles Espinoza.

"Cheios de ilusão e até desafiantes, os curdos acudiram às urnas convencidos de fazer História e de dar impulso ao processo que os levará ao passaporte próprio".

Ilusão é palavra adequada: a independência é inviável, ante a oposição dos quatro países em que há comunidades curdas e também da comunidade internacional —temerosa de que a independência do Curdistão iraquiano desestabilize ainda mais um Oriente Médio em permanente combustão.

Não importa. Fala mais alto entre os curdos o sentimento tribal, ainda mais em uma região em que as tribos desempenham papel político-social relevante.

O que surpreende é que o tribalismo seja fortíssimo também em uma região, a Catalunha, cuja capital, Barcelona, é uma cidade cosmopolita e muito aberta ao mundo.

Eu me apaixonei perdidamente por Barcelona ao constatar esse espírito de catalanismo, durante a cobertura dos Jogos Olímpicos de 1992 na cidade.

Era comovente ver o entusiasmo, o orgulho e a dedicação dos jovens voluntários que trabalharam durante os jogos a troco de um sanduichinho, um suco e um souvenir modesto do torneio.

Queriam porque queriam fazer da Olimpíada de Barcelona um espetáculo que deslumbrasse o mundo. Conseguiram.

O problema com o tribalismo catalão é que ele goza, dentro da Espanha, de uma situação suficientemente autônoma para tornar fora de propósito buscar a independência, objetivo de um plebiscito ilegal convocado para domingo (1º) pelo governo local e que o poder central está praticamente inviabilizando.

Criou-se, com isso, uma crise sem o menor sentido. A autonomia concedida à Catalunha e às demais comunidades espanholas, desde a redemocratização, a partir de 1977, é ampla, geral e quase irrestrita.

O catalão pode (e é) falado livremente, ensinado nas escolas, há jornais no idioma, e a região goza mais que as demais comunidades autônomas do progresso econômico.

Tanto é assim que, se a renda média da Espanha é 100, a da Catalunha é 119,7 (dados de 2013, últimos para os quais a comparação é possível). Mais: a Catalunha, com 16% da população, responde por 18% da economia espanhola.

Mas os fatos deixaram de contar. O que está valendo é o sentimento tribal, o "nós contra eles" de que muitos brasileiros também se queixam, embora, por aqui, a disputa seja de tribos político-ideológicas, não nacionalistas. Não importa, o estrago é parecido.


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