Folha de S. Paulo


Memórias de um país fracassado

O Rio de Janeiro vive uma situação de "guerra civil não declarada".

Você deve ter lido ou ouvido uma meia dúzia de vezes uma frase como essa a propósito da situação do momento na Rocinha.

O inacreditável é que ela não é de hoje. Foi disparada há quase um quarto de século, exatamente 23 anos, por ninguém menos que um presidente da República então recém-eleito, um certo Fernando Henrique Cardoso.

Foi em Praga, na cafeteria do Hotel Savoy, no dia 27 de outubro de 1994, em conversa com o pequeno grupo de jornalistas que cobria a viagem de FHC pelo Leste Europeu, depois da eleição e antes da posse.

Fernando Henrique teve oito anos depois dessa afirmação para acabar com a guerra civil. Não conseguiu, como se vê agora ou se vê todos os últimos muitos meses –e não apenas no Rio de Janeiro.

Luiz Inácio Lula da Silva teve também os seus oito anos para estancar a sangria (não, não me refiro à Lava Jato). Tampouco conseguiu, como se vê pelo "Monitor da Violência" que aponta uma morte a cada oito minutos, conforme o balanço divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceira com o Núcleo de Estudos da Violência (USP) e o portal G1.

Dilma Rousseff não chegou aos oito anos, mas nos seus cinco e algo também fracassou, de que dá prova o fato de que as 60 mil mortes/ano no Brasil superam o sangue derramado na Síria em guerra.

De Michel Temer e seu ano de governo nem preciso falar: as cenas da batalha da Rocinha falam por si só desse fracasso.

Tudo somado, fica claro que se trata de um fracasso do Estado brasileiro, não deste ou daquele partido ou líder, não deste ou daquele governo estadual.

O chocante nessa história toda é ler, em seguida à reportagem que reproduzia a fala de FHC, o seguinte título nesta Folha: "Ameaça faz colégio mudar de prédio" (no caso, era o Colégio de Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Se eu fosse marxista, diria que a história se repete como farsa. Como não sou, só posso dizer que a história se repete como tragédia. Não é possível que em um quarto de século o Brasil não tenha conseguido nem sequer chegar perto de equacionar o problema da criminalidade e que ela continue afetando a vida e o cotidiano da sociedade.

Nessa revisita às frases de Fernando Henrique de 23 anos atrás, aparece também a seguinte afirmação: "Não se pode permitir que o Rio viva em permanente depressão".

Um conformista diria que o Rio até saiu da depressão vista naquela época e chegou a ter um período mais ou menos dourado, mas voltou às suas profundezas com ainda maior intensidade.

O colapso da administração estadual, a roubalheira instalada nos governos do PMDB ameaçam fazer do Rio um Estado falido.

O então presidente eleito pregava um reequipamento da Polícia Federal, para que ela pudesse efetivamente combater o narcotráfico, o principal e bilionário negócio que está na origem da violência, mas não se limita exclusivamente ao Rio.

Deveria haver igualmente, sempre na opinião de FHC, um sistema de informações que permitisse identificar e prender os chefões do crime organizado, outra operação em que o Rio seria apenas uma das áreas envolvidas.

Vinte e três anos e três presidentes depois, a Polícia Federal pode ter se equipado para combater a corrupção, mas o narcotráfico equipou-se muito mais, implantou-se muito mais e está muito mais poderoso –o que representa outro fracasso do Estado brasileiro.

Pena que Fernando Henrique só tenha descoberto depois de deixar a Presidência que o problema das drogas não se resolve apenas com a guerra ao narcotráfico, que só gerou a "guerra civil não declarada" que se vê hoje no Rio, mas existe também em muitos outros Estados, com menos visibilidade.

Tivesse ele ou um de seus sucessores aberto a discussão sobre outros caminhos talvez o país tivesse avançado em vez de expor o seu fracasso todos os dias em horário nobre.


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