Folha de S. Paulo


Socorro, a bandalheira ameaça me transformar em cínico

Quando a Folha me escalou para ser correspondente em Madri, em 1992, a coluna com que me despedi, então na página A2, tinha por mote "Para não ficar cínico".

Explicava que a transferência ajudaria a evitar que o ceticismo, ferramenta indispensável para o exercício do jornalismo, se transformasse em cinismo, que corrói a alma e, claro, interfere nos textos.

Estávamos no período Fernando Collor de Mello, o que basta para entender meu medo de passar do ceticismo para o cinismo. Motivos abundavam. Conto apenas duas historinhas de que fui partícipe para demonstrá-lo.

1 - No final de 1992, PC Farias, o notório operador de Collor, foi a Barcelona para consulta sobre sua apneia do sono (mal que também me afeta). Tivera que obter autorização especial da Justiça, processado que estava.

Recebeu-me, depois do habitual plantão que os jornalistas fazemos na caça aos famosos, no luxuoso hotel Ritz. Queixou-se da vida e do prejuízo aos negócios causado pelas sucessivas denúncias de corrupção.

Cético, como de hábito, duvidei e perguntei se de fato os prejuízos eram tão grandes assim. PC apontou para os lustres de cristal, para os espelhos imensos e para o luxuoso mobiliário da sala do hotel em que conversávamos e disse: "Você acha que alguém com problemas financeiros poderia se hospedar em um hotel assim?".

Corrupto, mas sincero. E cínico. No Brasil atual, sobram corruptos e cínicos, mas faltam os sinceros.

2 - Um dia, me convidou para almoçar um assessor graduado de Zélia Cardoso de Mello, então ministra da Economia. Ofereceu-se para me contar todos os trambiques que NÃO haviam conseguido fazer, mas deixou claro que não me diria os que foram concretizados.

A lista dos trambiques não realizados preencheu umas 20 laudas (eram outros tempos, não digitais) de um relatório que encaminhei à direção de Redação, para conhecimento.

Imagine o leitor o tamanho do relatório que a Polícia Federal teria de fazer se investigasse todos os trambiques que o grupo conseguiu executar.

O chamado Collorgate expôs alguns deles –o suficiente para que o então presidente fosse afastado pelo Congresso Nacional, por falta de decoro.

Passado um quarto de século desse episódio, sou obrigado a admitir que o cinismo fica tentando me dominar a cada olhada nos jornais ou telejornais.

Se Collor tinha PC Farias, o que dizer de Michel Temer que tem na sua turma Henrique Eduardo Alves, Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima, os três já presos?

Para não mencionar Eliseu Padilha e Moreira Franco, sob suspeitas fundadas, mas protegidos pelo foro privilegiado (de que PC não gozava).

Como evitar que o ceticismo se transforme em cinismo quando todos os presidentes ainda vivos do período democrático, menos Fernando Henrique Cardoso, estão denunciados em casos de corrupção? Um deles, Luiz Inácio Lula da Silva, já está até condenado em primeira instância.

Como se fosse pouco, há ainda um bando de tarados que acha que uma ditadura militar seria a solução, o que omite elementos essenciais: no período militar, havia censura à imprensa, a oposição não tinha instrumentos para apurar os delitos, o Ministério Público não tinha ainda os poderes que só ganhou com a Constituição de 1988 e havia mortos, desaparecidos, torturados, banidos, exilados. Ou, posto de outra forma, corrompia-se a própria vida, o que é mais grave do que a corrupção financeira.

Há 25 anos, a transferência para Madri salvou-me de deslizar do ceticismo para o cinismo. Agora, uma nova transferência teria que ser acompanhada pela ida também de um bom geriatra.

A alternativa é um "que se vayan todos" nas próximas eleições. Pena que meu ceticismo me faça duvidar dessa hipótese –o que torna o cinismo o inimigo a enfrentar doravante.


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