Folha de S. Paulo


Só Gabo ou Karl Marx para contar a farsa que é o Brasil

Uma vez em Davos, muitos anos atrás, eu coincidi de almoçar com um jornalista da TV portuguesa. Do Brasil, ele não sabia nada além do enrosco à época com os dentistas brasileiros que procuravam se instalar em Portugal e eram sabotados e dos jogadores brasileiros nos times de lá.

Mas, muito curioso, me pediu para fazer um breve relato da história recente do Brasil (estávamos em 1993 ou 1994, já não me lembro).

Comecei contando que, ao final da ditadura, havia sido eleito um senhor respeitável que se gabava de jamais ter tido nem sequer um insignificante resfriado. Mas que, na véspera da posse, baixou no hospital, depois passou para outro e só saiu deste último para o cemitério.

Em seu lugar, como primeiro presidente da democracia recém-inaugurada, assumiu outro simpático senhor que, no entanto, havia sido presidente do partido da ditadura até bem pouco antes.

Não era propriamente popular, como presidente acidental, mas logo editou um plano econômico que congelou a inflação, o flagelo que então consumia os bolsos e os nervos de eleitores e, por extensão, o prestígio dos políticos.

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Polícia Federal encontra malas de dinheiro em endereço atribuído a Geddel Vieira Lima
Malas de dinheiro em endereço atribuído a Geddel Vieira Lima em Salvador

Tornou-se o presidente mais popular da história das pesquisas.

Quando a inflação descongelou, ficou tão impopular que não conseguiu nem sequer ter um candidato que o defendesse na eleição seguinte, ainda que mais de 20 tivessem se apresentado. Aliás, ganhou justamente o que mais violentamente criticara o presidente que havia sido o mais popular da história até então.

Ah, por acaso, ambos (o presidente impopular e o novo presidente eleito) haviam militado no partido que apoiara a ditadura, o que, em tese, deveria inabilitá-los para a democracia.

À essa altura, notei que meu interlocutor me olhava com alguma malícia, imaginando que eu estava inventando a história do Brasil. Parei, então, e lhe disse que a única pessoa habilitada a contá-la, naquele período, seria um certo Gabriel García Márquez –ele, o principal artífice do realismo mágico.

Pena que Gabo tenha morrido porque, ao acompanhar o noticiário dos últimos dias, anos até, me volta a sensação de que tudo não passa de uma invenção desses maravilhosos autores do realismo mágico.

Minto. Nem a prodigiosa imaginação deles seria capaz de inventar algo tão delirante como a realidade brasileira.

Aquelas malas e caixas de dinheiro cabem em Macondo, não no Brasil.

Só em cidades imaginárias, pode-se acreditar que todos os presidentes da democracia, exceto Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco, tenham sido denunciados –sempre por corrupção.

Não são poucos: José Sarney, Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer.

Se não é coisa de república bananeira, não sei mais o que é república bananeira.

Delatores delatam 1.829 políticos, no total, e depois, em uma nova gravação dizem que era tudo brincadeirinha. Se a nova gravação é brincadeirinha, as antigas valem?

Se não valem, o que era aquela mala com dinheiro filmada com um apressado homem de confiança do presidente? Que havia mala e que havia dinheiro, não foi o Gabo que inventou, tanto que o indigitado cidadão devolveu mala e dinheiro (aliás, devolveu em prestações, um tantão primeiro e o restinho depois).

Se não é a Gabo que devemos recorrer, talvez caiba adaptar Karl Marx e sua "a história se repete, a primeira vez como tragédia e, a segunda, como farsa".

Vê-se, velho Karl, que você não conheceu o Brasil. Aqui, a história se repete sempre como farsa, mas é sempre ao mesmo tempo uma tragédia para a maior parte do público, excetuados os farsantes que se divertem como corsários que são.


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