Folha de S. Paulo


Angola, quando os 'libertadores' se revelam os novos opressores

Bruno Fonseca/Associated Press
Angola's MPLA main ruling party candidate and defence minister, Joao Lourenco, shows his ink-stained finger after casting his vote in Luanda, Angola, Wednesday, Aug. 23, 2017. Lourenco is the front-runner to succeed President Jose Eduardo dos Santos, who will step down after 38-years in power in an oil-rich country. (AP Photo/Bruno Fonseca) ORG XMIT: XDF101
O ministro da Defesa e candidato à Presidência pelo MPLA, João Lourenço, após votar em Luanda

Visitar Angola como fiz em 1974, às vésperas da independência, tornava inevitável torcer pelo MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), em guerra aberta contra os colonizadores portugueses.

Foi uma espécie de curso rápido e prático sobre o apartheid, embora essa expressão só fosse usada para designar o regime sul-africano. Em Angola, havia duas Luandas, a capital: a Luanda dos brancos, de construções de alvenaria e vias asfaltadas; e a Luanda dos negros, de casas de papelão, de lata ou de madeira, implantadas em um areião.

A predatória colonização portuguesa tornava impraticável imaginar que fosse possível alterar esse cenário terrível. O único caminho parecia, logicamente, ser a independência, os negros governando um país de maioria negra.

Pena que essa perspectiva não se realizou com a independência: Angola acaba de conhecer seu terceiro presidente negro desde a independência, em 1975, todos do MPLA (Agostinho Neto, o patriarca da independência; José Eduardo dos Santos, de 1979 até agora, o segundo mais longevo ditador africano, depois de Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial; e o recém-eleito, o general José Lourenço).

Balanço sintético mas eloquente desses 42 anos, conforme reportagem da SIC, televisão portuguesa: "Angola tem um dos maiores consumos de champanhe per capita mas 70% da população vive com menos de US$ 2 por dia" (o indicador de pobreza adotado pelo Banco Mundial).

Basta para demonstrar que o "L" de Libertação do MPLA não passou de ilusão, de um engodo –mais um entre os movimentos que se diziam de libertação em muitas latitudes.

O MPLA de fato libertou a maioria negra da opressão dos brancos, mas apenas para submetê-la à opressão de uma gananciosa nomenclatura negra.

O "Mail & Guardian", jornal de um país, a África do Sul, que também conheceu a opressão dos negros pelos colonos brancos, escreveu, a propósito da eleição, que Angola é uma "arquetípica ditadura africana".

Como tal é também o paraíso para a corrupção. Escreve para Maka Angola, uma das raras publicações angolanas crítica do presidente Eduardo dos Santos, o analista D. Quaresma dos Santos (não é parente do presidente):

"O padrão de comportamento da família Dos Santos e de todos os seus apaniguados tem sido o de sugar os fundos do Estado para seu uso quando querem. Não vêem necessidade de preocupar-se com o fato de que há disseminadas fome e pobreza".

Outro crítico, o jornalista Rafael Marques de Morais, denuncia ao jornal espanhol "El Pais": "O presidente Dos Santos privatizou o Estado, e os principais bens do país –o setor diamantífero, o petróleo e o setor bancário– estão em mãos de seus filhos".

O caso mais notório é o da filha mais velha, Isabel Dos Santos, que, como presidente da petrolífera Sonangol, controla a principal riqueza do país, o que lhe permitiu tornar-se a primeira mulher multimilionária da África. Segundo o Centro de Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, entre 2002 e 2015, desapareceram € 24 bilhões do orçamento do governo (R$ 88,7 bilhões).

Também em Angola, falar em corrupção é falar em Odebrecht.

Em declarações à Procuradoria-Geral da República brasileira, o antigo chefe do Setor de Operações Estruturadas da construtora, Hilberto Mascarenhas Alves da Silva Filho, afirmou ter pago US$ 20 milhões (R$ 63 milhões) a um ministro angolano, cujo nome não foi revelado.

A ação da Odebrecht em Angola envolve outro crime, o de manter trabalhadores em condições semelhantes à escravidão, durante a construção da Biocom, fabrica de açúcar e etanol em Angola.

É esse país –"uma democracia mais formal do que prática", como escreveu Nicolau Santos para o jornal português "Expresso"– que muda de mãos pela primeira vez em 38 anos. Parece altamente improvável que mude também de costumes.


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