Folha de S. Paulo


O populismo respira, por aparelhos, mas respira

O populismo, esse fenômeno político amado e odiado em proporções parecidas, respira por aparelhos, mas respira, no país, a Argentina, que inventou a sua expressão mais duradoura, o peronismo.

É o que se pode deduzir dos resultados das Paso (Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), realizadas neste domingo (13): por incrível que possa parecer, deu empate entre o candidato do presidente Mauricio Macri (campeão do anti-populismo) e a ex-presidente Cristina Kirchner, a mais recente encarnação do populismo.

Explico melhor: as Paso não apontam quem se elege, mas apenas que partidos/coligações podem disputar as eleições de fato e, se há mais de um candidato em cada partido/coligação, qual deles vai ao pleito verdadeiro (em outubro). Funcionam, pois, como uma gigantesca pesquisa, não a tradicional boca-de-urna, mas, digamos, dentro-de-urna, já que todos os eleitores estão chamados a votar.

Pois bem: computados até o momento em que escrevo 95% dos votos, Esteban Bullrich, o candidato de Macri ao Senado pela Província de Buenos Aires, tinha 34,18% dos votos contra 34,11% de Cristina Kirchner.

Marcos Brindicci - 20.jun.2017/Reuters
Former Argentine President Cristina Fernandez de Kirchner gestures as she arrives at a rally in Buenos Aires, Argentina June 20, 2017. REUTERS/Marcos Brindicci ORG XMIT: BAS03
A ex-presidente da Argentina Cristina Kirchner em evento em junho

A Província de Buenos Aires é a mais importante do país, pois concentra 38% dos eleitores totais. A presença de Cristina na disputa dava às Paso locais um caráter plebiscitário, contra ou a favor do governo. Por extensão, contra ou a favor das reformas liberalizantes que Macri está adotando desde que assumiu em dezembro de 2015.

Só pelo resultado de Buenos Aires, não dá para dizer quem ganhou esse simbólico plebiscito. Cristina, com a retórica triunfalista de sempre, cantou, na madrugada de domingo, que "dois de cada três cidadãos disseram 'não' ao ajuste" (o programa que Macri chama de "mudança", mas que ela prefere batizar como "o mais brutal ajuste").

A ex-presidente está somando aos seus votos os de todas as outras forças não-governistas que disputaram as primárias na Província, duas delas, aliás, também ditas peronistas. Se essa conta correspondesse à realidade, de fato o "macrismo" teria ficado com apenas um terço dos votos. Mas não é bem assim: o terceiro colocado foi Sergio Massa, ex-chefe de gabinete de Cristina na Presidência, mas que rompeu com ela e está, hoje, mais próximo de Macri do que de sua ex-chefe.

Seus 15,52%, portanto, não podem ser batizados como "anti-ajuste".

Além disso, se se olhar as primárias para além da Província de Buenos Aires, tem-se um resultado nitidamente favorável a "Cambiemos", a coligação que apoia Macri: obteve 35,9% dos votos (para a Câmara de Deputados) contra 32,27% para o kirchnerismo. No Senado, pelos cálculos do jornal "Clarín", passará de 15 para 24 parlamentares, enquanto o kirchnerismo cai de 41 para 37 (números ainda preliminares, pois falta apurar algo como 3% dos votos).

Se a apuração dos votos restantes der a vitória a Cristina, ficará claro que não ocorreu o que Joaquín Morales Solá, colunista de La Nación e crítico de Cristina, chamou de "definitivo cansaço com o populismo". Mas tampouco terá havido a avalanche eleitoral que costuma caracterizar o peronismo. Longe disso.

O resultado definitivo fica para outubro, na eleição de verdade, em que a ex-presidente acabará eleita senadora, se se repetir o resultado das primárias, pois o modelo argentino prevê que a coligação mais votada eleja dois dos três senadores da Província, ficando o restante para o segundo colocado.

Por falar em modelo, as primárias funcionam na Argentina como cláusula de barreira: só vão à eleição de fato partidos/coligações que superem 1,5% dos votos. Na Província de Buenos Aires, a votação de domingo eliminou 10 das 15 chapas que se apresentaram. Serve para o Brasil?

Por falar em Brasil, o plebiscito que houve na Argentina em relação às reformas de Macri tende a se repetir por aqui em 2018, com a diferença de que Macri é infinitamente mais popular que Michel Temer. Repetir-se-á também a relativa indefinição do voto na Argentina?

Marcelo Capece/Noticias Argentinas/AFP
This photo released by Noticias Argentinas shows Argentinian President Mauricio Macri (C-L) kissing the hand of Argentinian Vicepresident Gabriela Michetti (C-R) during a celebration after primary legislative elections in Argentina, in Buenos Aires on August 13, 2017. / AFP PHOTO / NOTICIAS ARGENTINAS / MARCELO CAPECE / Argentina OUT
O presidente argentino, Mauricio Macri, beija a mão da vice, Gabriela Michetti, na festa de seu partido

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