Folha de S. Paulo


Lava Jato corre o risco que abalou a Mãos Limpas

Geraldo Bubniak/AGB/Folhapress
Coletiva sobre a 39ª fase da Lava Jato, denominada Operação Paralelo, na superintendência da Polícia Federal em Curitiba (PR)
Membros da Lava Jato em coletiva na 39ª fase da operação, na superintendência da PF em Curitiba

O fim do grupo exclusivo da Lava Jato em Curitiba pode ter sido apenas uma medida de natureza administrativa, que não afetará necessariamente as operações da maior operação de combate à corrupção no Brasil.

É essa, pelo menos, a alegação oficial. Mas pode ser também um passo mais para quebrar as pernas dos investigadores. Suspeito que seja esta a hipótese mais provável, por um motivo bem simples: não dá para ser inocente a ponto de acreditar que uma investigação que atinge os mais poderosos agentes públicos e privados –até aqui intocáveis– prossiga sem que haja uma reação deles e de seus protegidos e/ou correligionários.

É útil, a propósito, rememorar o que houve com uma operação parecida, a "Mãos Limpas", efetuada na Itália, que tem pontos de contato com a brasileira, mas também tem, naturalmente, diferenças importantes.

Vou basear a comparação em excelente artigo da economista Maria Cristina Pinotti para o Instituto Fernand Braudel, notável centro de pesquisas em São Paulo.

Para começar, a rememoração do que foi a "Mãos Limpas":

"foi a maior investigação sobre corrupção na administração pública de que se tem notícia. Ocorreu na Itália, a
partir do início de 1992, e durou dez anos.

"Seu período crucial, entretanto, teve a duração de aproximadamente três anos, até o fim de 1994.

"As investigações desvendaram um sistema criminoso e corrupto muito abrangente que atingiu algumas centenas de parlamentares de praticamente todo o arco político da época (exceção feita aos partidos de extrema esquerda e extrema direita), além de empresários, policiais e membros do judiciário".

Muito semelhante à Lava Jato, certo?

Na Itália, foram acusados dois chefes de governo (Bettino Craxi, do Partido Socialista Italiano, e Silvio Berlusconi, criador de "Forza Italia", de direita).

Mais uma coincidência com o Brasil: aqui, todos os três chefes de governo mais recentes (o atual, Michel Temer, e seus antecessores Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) estão sob suspeita em casos investigados pela Lava Jato, de diferentes naturezas.

Uma diferença essencial: Bettino Craxi teve que renunciar e acabou morrendo no exílio (na Tunísia). Berlusconi chegou a ser condenado em primeira instância, mas escapou na segunda instância e até hoje consegue postergar indefinidamente o julgamento por diferentes acusações.

Stefano Rellandini - 8.nov.2015/Reuters
Forza Italia party (PDL) leader Silvio Berlusconi speaks during a Northern League rally in Bologna, central Italy, November 8, 2015. The Northern League, Italy's third largest political force, is planning a major rally to voice its opposition to the government of Prime Minister Matteo Renzi. REUTERS/Stefano Rellandini ORG XMIT: SRE111
Silvio Berlusconi, líder do partido Forza Italia, em foto de 2015

Como é natural, pelo peso político e econômico dos envolvidos, a "Mãos Limpas" provocou enorme reação, relata Pinotti:

"Avolumaram-se as denúncias na imprensa sobre abuso de poder nas investigações e foi iniciada uma verdadeira indústria de dossiês, sobretudo contra a figura principal da operação, o procurador Antonio Di Pietro. Em meados de 1994 o conselho de ministros do novo governo [de Berlusconi] aprovou um decreto lei que ficou conhecido popularmente como decreto 'salva ladrões' (salva ladri), que impedia prisão cautelar para a maioria dos crimes de corrupção. Com isso, a maior parte dos presos foi solta, indo para prisão domiciliar, provocando um enorme dano nas investigações".

Lembra o Brasil? Lembra a tentativa de derrubar a hipótese de prisões após condenação em segunda instância?

Há mais, sempre segundo Pinotti:

"Há quem diga, por exemplo, que seu objetivo [da OMP ou Operazione Mani Pulite, nome em italiano] era eliminar toda a classe política, seguindo um plano orquestrado pelos comunistas, ou pela CIA –dependendo da preferência ideológica do acusador."

Você certamente já leu ou ouviu esse tipo de comentário sobre a Lava Jato, certo?

Continua a comparação: "Lá (como cá...) acusava-se a OMP de investigar apenas alguns setores da classe política, preservando outros (como o Partido Comunista)".

Lembra-se de o PT inteiro dizer que a Lava Jato é uma operação para destruir o partido? Na Itália, a defesa dos magistrados era que não haviam conseguido provas para indiciar outros setores.

Aqui, a defesa acabou sendo a realidade: a Lava Jato não poupa nenhum grande ou médio partido.

A operação desmonte da "Mãos Limpas" passou também por denúncias de excessos no uso de delações premiadas, de prisões e de escutas, como ocorre agora no Brasil.

Diz Pinotti, sobre a Itália: "As denúncias nunca foram comprovadas, mesmo depois de inúmeras investigações oficiais ocorridas desde então".

Creio que é o suficiente para que o público fique atento para evitar o desmanche da Lava Jato, que pode ter defeitos e pode até cometer abusos, mas tem um resultado positivo impossível de negar: prisões de intocáveis e a confissão de executivos de grandes empresas de que cometeram crimes.

Ninguém confessa nada se não cair na rede uma investigação bem feita.


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