É preciso repetir sempre que a obscena desigualdade que marca a América Latina (e o Brasil em particular) não é apenas uma questão ética, o que já seria importante. É também "um obstáculo para o desenvolvimento sustentável", como reafirma a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) em seu Panorama Social 2016, divulgado na terça-feira (30).
Diz o relatório que, "entre 2008 e 2015, a desigualdade na distribuição de renda das pessoas diminuiu na América Latina graças à prioridade que os países deram ao desenvolvimento social, porém seu ritmo de declínio se desacelera entre 2012 e 2015 e os níveis atuais seguem sendo muito altos para alcançar o desenvolvimento sustentável".
Ricardo Hiar/Folhapress | ||
O catador de recicláveis Thiago Santos, 28, beneficiário do Bolsa Família, em São Paulo |
Aqui é preciso abrir um parêntesis para desmontar, mais uma vez, a lenda de que a desigualdade caiu no Brasil nos anos Lula. Caiu, talvez, a desigualdade entre salários, mas não a desigualdade verdadeiramente importante, que é entre a renda do capital e a renda do trabalho.
O relatório da Cepal deixa claro esse aspecto, que já cansei de enfatizar em meia dúzia de textos ao longo dos anos.
Diz: "Esta edição do Panorama Social também chama a atenção sobre a estrutura da propriedade (de ativos físicos e financeiros) como um fator fundamental para a reprodução da desigualdade na região. Por meio de um estudo de caso, constata-se que a distribuição da riqueza é ainda mais desigual que aquela medida somente pelas rendas correntes das pessoas".
Traduzindo: a desigualdade não pode ser medida apenas pelas rendas resultantes de salários, aposentadorias e pensões. Para o retrato ser realista, é preciso pôr nele ganhos do capital, heranças, rendas resultantes de patrimônio, investimentos financeiros e atividades afins.
A lenda da queda da desigualdade no Brasil foi alimentada pelo tal índice de Gini, em que zero representa ausência de desigualdade e 1 a desigualdade máxima. Acontece que o índice só mede salários, aposentadorias e pensões, não todos os ganhos relacionados à propriedade e ao investimento de capital.
Mesmo com esse defeito congênito, o Gini de 17 países da América Latina que figuram no relatório da Cepal foi 0,469 em 2015, "um nível considerado alto". Logo, a desigualdade real entre rendimento do capital e do trabalho é necessariamente ainda mais alta.
E, como se fosse pouco, a Cepal mostra que a melhora detectada entre 2008 e 2012 (1,2% anual em média) viu seu ritmo diminuir para a metade entre 2012 e 2015 (0,6% anual).
No Brasil, um dos raros estudos em que se buscaram dados que fossem além da valiosa mas insuficiente Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) teve como coautor Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Ele mergulhou em dados do Imposto de Renda para "recuperar a história dessa desigualdade desde os anos 1920, quando éramos ainda um país rural, com população menor do que a do Estado de São Paulo hoje".
Conclusão: "De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil, mas não a desigualdade. A concentração de renda no 1% mais rico da população adulta manteve-se em patamar alto, sem nenhuma tendência clara de longo prazo".
Ferreira de Souza calcula que o 1% mais rico e que fica com uma fatia do bolo desproporcional "corresponde a um universo em torno de 1,5 milhão de pessoas com renda bruta mensal a partir de algo em torno de R$ 20 mil".
Faça-se, então, a comparação: o Bolsa Família, que beneficia 14 milhões de famílias ou cerca de 42 milhões de pessoas, precisa de 14 anos para dar-lhes os recursos que, em apenas um ano, vão para os portadores de títulos da dívida pública, via juros.
Que sejam 10 vezes mais que o 1,5 milhão do top 1% –ainda assim, é uma brutal diferença, que perpetua a desigualdade e destrói a propaganda de que ela diminuiu nos últimos anos.
crossi@uol.com.br