Folha de S. Paulo


A democracia sai arranhada

Começo pela correta avaliação de Neil Munshi, colunista do Financial Times: "Trump subverteu não apenas o mundo político, mas também a indústria de pesquisas, a mídia, os mercados de previsões, os establishments Republicano e Democrata e toda a ordem geopolítica".

Ante tamanha revolução, é prudente deixar a poeira baixar antes de aventurar-se a qualquer previsão sobre como será o seu governo.

Mas, de saída, a sua campanha já minou o prestígio da democracia que parecia inabalável no Ocidente. Antes mesmo da eleição, o filósofo Daniel Bell, radicado em Pequim, já escrevia para o "World Post", publicação do site Huffington Post, que algumas características do sistema de partido único chinês, como a meritocracia, produziam líderes mais competentes do que nos Estados Unidos.

"Ninguém chega nem perto do topo sem primeiro ser testado durante longos anos como governador de uma província chinesa", explicava.

É uma tese absurda. A meritocracia na China depende, para ser premiada, de incondicional fidelidade ao Partido Comunista, o que é a antítese da democracia.

Mas o fato de um filósofo contrapor a democracia ao autoritarismo mostra o tamanho do problema. O que é assinalado também, sem essa comparação, por um colunista de excelência, como John Carlin ("El País"), já após a vitória de Trump: "Que uma nação tão próspera, com uma democracia tão antiga, tenha cometido semelhante disparate põe em questão como nunca a noção sagrada no Ocidente de que a democracia representativa é o modelo de governo a seguir pela humanidade".

Reforça editorial do "Financial Times" : "A vitória de Trump parece representar um desafio para o modelo democrático ocidental".

É sintomática a euforia com que Marine Le Pen e Geert Wilders, líderes da extrema-direita autoritária na França e na Holanda, receberam a vitória do magnata.

De fato, o modelo, pelo menos o norte-americano, foi absurdamente incapaz de "capturar a efervescente raiva de uma grande fatia do eleitorado americano que se sentiu deixado para trás por uma recuperação [econômica] seletiva, traída por acordos comerciais que eles vêem como ameaça a seus empregos e desrespeitado pelo establishment de Washington, de Wall Street e da mídia 'mainstream", como escreveu Jim Rutenberg, analista de mídia do "New York Times".

Foi precisamente a essas pessoas que se dirigiu Trump em seu primeiro pronunciamento após decidido o pleito, ao dizer que "os homens e mulheres esquecidos de nosso país não serão mais esquecidos".

O problema com essa frase e com toda a campanha de Trump contra o establishment é que ele é a quintessência do mundo dos negócios, sem regras e sem limites, que surfa em todas as crises e sai delas sempre airoso.

Está longe, portanto, de ser a pessoa indicada para corrigir as políticas que provocaram o sentimento de abandono que, por sua vez, levaram metade do eleitorado a votar por Trump.

Se, em todo caso, conseguir o milagre, vai polir a imagem da democracia. Se não, o golpe poderá ser fatal.


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