Folha de S. Paulo


O Nobel que a Colômbia rejeitou

O Nobel da Paz deste ano é uma contradição: premia o presidente colombiano Juan Manuel Santos por seus "decididos esforços" pela paz mas ao mesmo tempo estende um "tributo" ao povo colombiano, "que não desistiu de uma paz justa".

Ora, o povo colombiano acaba de rejeitar, faz apenas cinco dias, a paz tal como acertada pelo presidente Santos com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Se a sociedade colombiana não desistira de uma paz justa, tal como diz o comunicado sobre o prêmio, e, não obstante, rejeitou o acordo, então a paz não era justa e o presidente não merecia o prêmio.

Xinhua-5.out.2016/COLPRENSA
(161005) -- BOGOTA, Oct. 5, 2016 (Xinhua) -- Colombian President Juan Manuel Santos (R) meets with former Colombian President and senator Alvaro Uribe at the Narino Palace in Bogota, capital of Colombia, on Oct. 5, 2016. Both sides discussed how to push the peace process with the Revolutionary Armed Forces of Colombia (FARC) forward, after voters rejected the peace agreement signed by the government and the FARC in Sunday's referendum. A statement from the presidency stated that Santos had invited Uribe and another former president Andres Pastrana, both of who opposed the peace deal, for talks. (Xinhua/COLPRENSA) (jg) (ah) ***MANDATORY CREDIT*** ***NO FILE-NO SALES*** ***EDITORIAL USE ONLY*** ***COLOMBIA OUT***
Juan Manuel Santos (à dir.) cumprimenta o ex-presidente Álvaro Uribe, contrário a acordo com as Farc

Minha opinião: Santos mereceu o prêmio, sim, por mais que tenha sido derrotado no plebiscito de domingo (2). Mas aviso ao leitor, por transparência, que não sou neutro nesse assunto: faço parte do grupo brasileiro de amigos do processo de paz na Colômbia, designado pelo governo Dilma Rousseff, um dos inúmeros comitês do gênero criados por inspiração do governo chileno.

Santos mereceu o prêmio porque, independentemente dos resultados do plebiscito, permanece o fato de que as Farc aceitaram fazer política com a voz e não com as armas, o que levou a um cessar-fogo que, por si só, é uma bênção para o país, mesmo que não se chegue finalmente a um acordo definitivo e que seja aceito pelo eleitorado.

Alguns números que dão concretude à bênção, conforme dados compilados pelo sítio "Silla Vacía":

"13.001 vítimas de minas terrestres, a maioria delas disseminadas pelas Farc; 21.900 sequestrados, segundo o ex-sequestrado e líder de vítimas desse flagelo Herbin Hoyos; mais de 3.500 crianças recrutadas, segundo o relatório de memória histórica 'Basta Ya'; dezenas de povoados destruídos, torres derrubadas, oleodutos bombardeados; mais de 30 mil camponeses despojados pelas Farc, segundo os casos que recebeu a Unidade de Restituição de Terras; 220 mil colombianos que perderam a vida entre 1958 y 2013, por conta do conflito armado, segundo o informe de Memoria Histórica".

Falta ainda mencionar os mais de 7 milhões de deslocados internos, uma das maiores concentrações de refugiados do mundo.

São, portanto, fatos que inequivocamente justificam os "resolutos esforços" que o presidente Santos desenvolveu pela paz.

São também número que explicam a decisão da grande maioria dos colombianos de ou abster-se no plebiscito ou votar contra os termos do acordo de paz — mas não contra a paz, ressalve-se.

Com eles, as Farc criaram o ambiente para que a maioria rejeitasse tanto um tratamento judicial teoricamente mais brando para seus integrantes como a participação do grupo na vida política.

Difícil dizer, de saída, se o Nobel da Paz a Santos facilitará ou não a indispensável renegociação do acordo. Há na Colômbia quem diga que o ex-presidente Álvaro Uribe, o principal opositor aos termos do acordo, queria estar ele no lugar de Santos como Nobel da Paz.

Pode ser que, agora que o prêmio já foi dado (e não haverá um segundo Nobel mesmo que saia um novo e definitivo acordo), Uribe tanto pode endurecer como curvar-se ao fato de que a comunidade internacional referendou os "decididos esforços" pela paz — e só cabe, pois, continuar com eles no pós-plebiscito.


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