Folha de S. Paulo


Expurgo na Turquia dá passos rumo à ambição do sultão Erdogan

Kayhan Ozer - 29.jul.2016/Presidential Press Service/Associated Press

A esta altura, está mais que evidente que o expurgo que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, está promovendo vai muito além da lógica —e justa — repressão aos golpistas que ensanguentaram o país no dia 15 passado.

Trata-se, acima de tudo, de eliminar da cena pública os aliados do líder islâmico Fetullah Gülen —e, no embalo, perseguir outros rivais. Em outras palavras, dar passos rumo à ambição de Erdogan de se tornar um caudilho ou, para entrar no contexto turco, um sultão indisputado.

Afinal, antes da fundação da República Turca, em 1923, o país teve apenas 14 anos de democracia parlamentar nos quase 600 anos do Império Otomano. E, depois, os militares intervieram continuamente.

O "gulenismo" oferece o pretexto ideal para a perseguição: ninguém discute que o movimento incrustou seus militantes e/ou simpatizantes em diferentes áreas do aparelho do Estado, como no Judiciário e entre as Forças Armadas, e no setor educacional, que, aliás, é o eixo central do Hizmet ("Serviço"), o movimento de Gülen.

O panorama turco fica turvo, no entanto, quando se tenta saber se Gülen de fato orquestrou a tentativa de golpe, como acusa o governo, ou se a iniciativa foi de militares que estavam para ser decapitados no ciclo de promoções e remoções previsto para agosto. As opiniões são diametralmente opostas entre os especialistas em Turquia.

Joshua Hendrick, professor de Sociologia em Maryland e autor de livro sobre Gülen, escreve: "O golpe vai contra tudo que ele diz defender, como resolução de conflitos e paz. O golpe foi tão pobremente concebido e conduzido e tão inepto que quebrou até a cadeia de comando entre os conspiradores. Você pode dizer muitas coisas sobre o movimento Gülen, mas não pode dizer que são desorganizados. Assim, o golpe é contrário a seus propósitos e sua estrutura organizacional."

Rebate Metin Gurcan, colunista do sítio "Al-Monitor" e conselheiro militar turco entre 2002 e 2008: "Quando se escrutinam as mensagens de WhatsApp e as listas dos conspiradores que seriam apontados para postos sensíveis no país, fica fora de dúvida que a tentativa foi uma invenção de membros do movimento de Fetullah Gülen".

Aí é que entra a dúvida-chave: invenção do Hizmet ou de seus membros, à revelia do comando central?

Se foi do movimento, tratar-se-ia de fato de um grupo terrorista, como é designado por Erdogan, e justificar-se-ia a repressão, desde que respeitados os direitos humanos, o direito de defesa e o devido processo legal (o que, segundo a Anistia Internacional, não está ocorrendo).

Se, ao contrário, foi uma iniciativa individual, mesmo que de gulenistas, a repressão indiscriminada é absurda.

Vale a análise de um liberal e secular —portanto, crítico de um movimento islamita—, caso de Ali Bayramoglu: "Não pode ser crime trabalhar para instituições gulenistas ou ter relações com gulenistas. Ser um membro da comunidade de Gülen tampouco é um crime."

Essa constatação civilizada está sendo desprezada na Turquia do sultão Erdogan.


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