Folha de S. Paulo


Fantasma conhecido agita um país-chave para Europa e EUA

No século 20, um golpe militar na Turquia, ainda mais contra um partido islamita, seria pé de página, de tão rotineiro. No século 21, é um choque, seja qual for o desfecho do movimento lançado nesta sexta (15), indefinido até a conclusão desta edição.

Afinal, a Turquia tem o segundo maior exército da Otan, após os EUA, é vizinha da Síria conflagrada e uma das principais forças na guerra ao Estado Islâmico.

Trata-se, portanto, de uma mexida relevante no tabuleiro geopolítico, ainda mais quando se sabe que um dos méritos inegáveis da era do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento), que se confunde com o presidente Recep Tayyp Erdogan, era o fato de ter finalmente posto os militares sob controle civil.

Murad Sezer/Reuters
Militar turco próximo a praça Taksim; Forças Armadas declaram toque de recolher e fecham acessos a Istambul e Ancara, na Turquia
Militar turco próximo da praça Taksim; Forças Armadas declaram toque de recolher

Do conflito entre o Exército e o AKP basta lembrar que o antepassado deste, o Refah, foi deposto em 1997 no mais recente golpe de uma interminável série deles.

O confronto é fácil de entender: os militares se consideram guardiães do laicismo entronizado por Kemal Atatürk, o fundador da Turquia moderna. Conviver com um partido religioso, ainda que moderado, nunca foi fácil.

Tanto não foi que Erdogan promoveu um megaprocesso (batizado de Ergenekon), que condenou 20 dos 275 acusados à prisão perpétua, entre eles militares de alta patente, jornalistas e políticos da oposição "kemalista".

O que ajuda a entender o momento do golpe é a anulação do processo, há apenas três meses, para que ocorra um novo julgamento. É razoável supor que ao menos uma parte dos militares –ligados aos acusados– tenha se levantado para bloquear a retomada do processo.

Também ajuda a entender o momento a coleção de problemas que Erdogan vem enfrentando, assim descrita pelo especialista em Turquia Mustafa Akyol para "The New York Times": "A retórica de abertura liberal [que Erdogan usou ao chegar ao poder em 2003] deu lugar ao autoritarismo, o processo de paz com os nacionalistas curdos fracassou, a liberdade de imprensa diminui, e os ataques terroristas aumentam".

O fascínio que o AKP e Erdogan exerceram nos primeiros tempos se devia à expectativa de que seria a primeira vez que um partido islamita se mostrava capaz de conviver plenamente com a democracia. Esse fascínio está se diluindo mais e mais.


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