Folha de S. Paulo


Quando a esquerda se lambuza

Lembra-se do ditado popular de antanho com o qual o então chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Jaques Wagner, explicou canhestramente os sucessivos escândalos envolvendo seus companheiros do PT?
Dizia Wagner que "quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza".

Eis que outro grupo importante da esquerda latino-americana, o kirchnerismo argentino, é surpreendido lambuzando-se à farta, em cena que supera de longe, pelo impacto midiático, o episódio do dinheiro na cueca encontrado com um assessor de José Guimarães, mais tarde líder do governo Dilma na Câmara.

O personagem da vez chama-se Jo­sé Ló­pez, homem-chave do kirch­ne­ris­mo co­mo se­cre­tá­rio de Obras Pú­bli­cas, de­tido de madrugada quando tentava esconder US$ 9 milhões mais relógios de marca, ienes japoneses e até notas do Qatar.

O local escolhido para a operação foi um convento na periferia de Buenos Aires, cujas freiras contaram depois aos jornais que López lhes disse que estava escondendo o dinheiro por temor de ser roubado: "Vão me roubar porque eu roubei dinheiro para ajudar aqui [o convento]".

A importância de López no esquema dos Kirchner é descrita no jornal espanhol "El País": "Ló­pez, que che­gou a manejar di­re­ta­men­te fun­dos de cerca de € 9 bilhões em di­ver­sos proje­tos, era a mão direita de Julio De Vi­do, o mi­nis­tro que controlou to­das as obras. Ambos são mem­bros dos cha­ma­dos 'pin­gui­nos', gru­po de má­xi­ma con­fian­ça que Nés­tor Kirch­ner trouxe a Bue­nos Ai­res de San­ta Cruz, província de que foi go­ver­na­dor, na gélida Pa­ta­gônia".

Era inevitável, nessas circunstâncias, que a lama escorresse sobre todo o kirchnerismo, não apenas sobre o funcionário preso.

Escreve, por exemplo, Carlos Pagni, respeitado colunista do jornal "La Nación", ambos críticos permanentes do governo dos Kirchner:

"López foi a engrenagem central de uma maquinaria de poder. Os Kirchner lhe confiaram durante quase 30 anos seu tesouro mais valioso: a obra pública."

Os peronistas, que compõem o multifacetado conglomerado em que se insere o kirchnerismo, sentiram tanto o golpe que, logo após a prisão de López, três deputados e uma senadora abandonaram a Frente pela Vitória, a marca-fantasia dos Kirchner.

A própria Cristina Fernández de Kirchner, embora tenha negado (como era óbvio) qualquer responsabilidade pelo dinheiro apreendido com López, admitiu, em mensagem no Facebook, que os militantes de seu grupo "estão profundamente doloridos, como se alguém lhes tivesse dado um soco no estômago".

Estão mesmo, como disseram à mídia local artistas e intelectuais que defenderam sempre o modelo.

Resumo, extraído pelo sociólogo mexicano Jorge Castañeda, que já foi organizador de encontros da esquerda latino-americana, dos quais até Lula participou:

"A corrupção se en­con­tra mais pre­sen­te que nun­ca, inclusive sob go­ver­nos con­du­zi­dos por par­ti­dos ou lí­de­res de esquerda, que se va­n­glo­ria­vam de que eles nun­ca incorreriam nas odiosas práticas de seus carrascos ou repressores, as eli­tes la­ti­no-a­me­ri­ca­nas."


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