Folha de S. Paulo


Glamorizando o crime

O ator-em-traje-de-jornalista Sean Penn fez a pergunta certa na reportagem que acompanha sua entrevista com Joaquín "El Chapo" Guzmán, que se orgulha de ser -e de fato é- o maior traficante de drogas do mundo.

"Não somos, o público americano, cúmplices daquilo que demonizamos?", perguntou o ator, referindo-se ao público que é o maior consumidor de drogas.

Em seguida, sugere que o consumidor norte-americano é de fato cúmplice de cada morte e de cada ato de corrupção "que resulte de nosso insaciável apetite por narcóticos ilícitos".

De acordo, Sean. Pena que você não tenha se incluído entre os cúmplices, ao glamorizar o crime, por meio da entrevista que fez com o "capo" então em fuga.

Lamenta, por exemplo, Pascal Beltrán del Rio, diretor-editorial do jornal "Excelsior":

"Lembro os tempos em que os personagens de Hollywood buscavam pôr-se ao lado de pessoas de estatura moral ou de gente perseguida por seus ideais.

Hoje, o modelo que fascina, e não só Hollywood, é quem enriquece violando a lei, zombando da autoridade e matando quem se oponha a seus fins".

De fato, não é apenas o pessoal de Hollywood que se sente fascinado pelos criminosos, como constata outro jornalista mexicano, o também acadêmico Ricardo Raphael, em coluna para "El Universal":

"Já faz tempo que Joaquín Guzmán Loera se tornou em um mito principal de nossa cultura. A épica de seu personagem inspirou muitos a investir a vida em negócios criminosos".

A glamorização do narcotráfico acaba deixando de lado o tremendo custo, em vidas e recursos financeiros, que vem com ele.

Vidas: "Das 120 mil pessoas mortas na década passada, metade veio das guerras que o cartel de Sinaloa abriu", disse a "The New York Times" o jornalista mexicano Héctor de Mauleón, referindo-se ao cartel liderado por "El Chapo".

Recursos: segundo o Informe Global da Paz-2015, elaborado pelo Instituto para a Economia e a Paz, a guerra contra o narcotráfico custa ao México US$ 221 bilhões anuais (R$ 894 bilhões), calcula outro jornalista, Eduardo Ruiz Healy ("El Imparcial" de Sinaloa).

Não dê de ombros, imaginando que se trata de um problema estritamente mexicano. No Brasil, também é uma ferida importante, igualmente glamorizada.

Basta ver a babação de ovo em cima de presidentes de escolas de samba, após cada premiação dos desfiles anuais, omitindo o fato de que parte deles é sabidamente envolvida com o jogo do bicho.

E, atenção, há muito tempo que o jogo do bicho deixou de ser uma contravenção relativamente menor para se tornar parte do vasto negócio do crime organizado.

Nesse cenário, é natural que tais negócios, no Brasil e no resto do mundo, progridam mais e mais.

É inútil supor que a nova prisão de "El Chapo" significará uma redução do tráfico e do consumo, o que ele próprio admitiu a Penn que não acontecerá.

A evolução dos negócios e sua consequente glamorização só provam que a guerra ao tráfico está sendo perdida. Não é hora de reavaliar as estratégias?


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