Folha de S. Paulo


As duas heranças de Macri

É tentador jogar as derrotas de Cristina Kirchner e Nicolás Maduro no mesmo saco, o de eventual início do fim do ciclo de governos esquerdistas inaugurados por Hugo Chávez em 1999.

Talvez seja de fato uma troca de sinal ideológico na América do Sul, mas é importante deixar claro que há mais diferenças do que semelhanças entre a Venezuela chavista e a Argentina kirchnerista.

Duas delas, diretamente conectadas aos processos eleitorais, precisam ser enfatizadas:

1 - O fracasso econômico e social na Venezuela é colossal. Na Argentina, seria pesado falar de fracasso, até porque seus problemas são de certa maneira menos agudos do que os do Brasil, por exemplo.

2 - Consequência do anterior: a derrota de Maduro foi esmagadora, a de Cristina por apenas três pontos percentuais (sem contar que o peronismo ainda tem a maioria do Congresso e dos governadores).

Olhando para o passado mais remoto, tem-se que a Argentina de 2015 está melhor do que a Argentina de 2003, quando Néstor Kirchner assumiu a Presidência.

Já a Venezuela, na gestão Maduro, dilapidou os ganhos sociais (contra a pobreza, por exemplo) conseguidos por Hugo Chávez.

Mauricio Macri assume, portanto, em melhores condições do que assumirá eventualmente a oposição venezuelana se conseguir convocar (e vencer) um referendo revogatório do mandato de Maduro.

A dificuldade central do novo presidente argentino está delineada em texto do colunista Joaquín Morales Solá (do jornal portenho "La Nación"), em que, paradoxalmente, analisa o fracasso de Cristina:

(O populismo) "requer uma condição: precisa de muito dinheiro, ainda que se trate de recursos que pertencem a várias gerações. É o que gastaram o kirchnerismo argentino, o chavismo venezuelano e, de modo mais 'light', o PT brasileiro, até que os ventos mudaram e o petróleo e a soja deixaram de valer o que valiam. O populismo sem talões de cheques não tem destino".

Vale para o populismo, vale para qualquer outro tipo de modelo, de direita, de centro ou de esquerda.

O problema, para Macri (ou para qualquer presidente que venha a substituir Dilma Rousseff, agora ou no fim de seu período, ou Nicolás Maduro) é que parte do talão de cheques populista foi usada para implantar programas sociais que melhoraram a face desses países (embora, repito, a da Venezuela tenha voltado a ficar feia como antes).

Na Argentina, por exemplo, a pobreza caiu de 57% em 2002 para os atuais 20% ou pouco mais. O desemprego baixou de 21% em 2002 para 7% agora. A cobertura educativa subiu de 62% para 80%.

Claro que, para isso, o gasto público saltou de 17,4% do PIB em 2004 a 32,7% em 2014. Estima-se que este ano o deficit fiscal será superior a 7% do PIB, a maior porcentagem desde 1982 e o quinto buraco consecutivo.

Trocando em miúdos: o talão de cheques acabou, e a Argentina entrou no cheque especial, sem fundos para cobri-lo.

O desafio de Mauricio Macri é desfazer a herança maldita sem mexer na bendita.

Não seria fácil em qualquer circunstância, mas fica mais difícil com a antecessora pintada para a guerra.


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