Folha de S. Paulo


A morte como vizinha

Assustam mais as 14 mortes de San Bernardino, nos EUA, do que as 130 de Paris.

Explico: os acusados pelos atentados da capital francesa tem o perfil dos suspeitos de sempre. Muçulmanos radicalizados, quase todos, bem ou mal, no radar das autoridades, um deles com passagem pela Síria, em cujas terras instalou-se o que hoje é o pesadelo principal do homem branco (o Estado Islâmico).

Mais: habitantes de localidades em que há notórias dificuldades para a integração de imigrantes ou de seus descendentes.

San Bernardino é, ao contrário, obra de um vizinho como outro qualquer.

Syed Fa­rook e Tash­feen Ma­lik, os autores da matança, eram muçulmanos, mas nunca haviam demonstrado radicalismo nem mesmo para o seu círculo íntimo.

Não viviam em um bairro problemático nem frequentavam uma comunidade liderada por pregadores radicais.

É eloquente, em "El País", a descrição do enviado especial Pablo Ximénez de Sandoval: "Ven­do o bairro de clas­se mé­dia de Red­lands, on­de vi­viam, é di­fí­cil con­ce­ber que semelhan­te ho­rror sur­gisse de um cha­lé geminado a 100 quilô­me­tros de Los An­ge­les, no qual guar­davam mais de 5.000 ba­las e 12 bom­bas ca­se­iras".

Não tinham, pois, o perfil de integrantes das chamadas "células adormecidas", grupos de radicais estabelecidos em países ocidentais que ficam quietinhos, aguardando orientação para um atentado.

Nem pareciam, a olho nu, lobos solitários. Estavam mais para cordeiros que, empapados do amor do norte-americano pelas armas, foram acumulando munição até que um gatilho qualquer —que talvez nunca se descubra qual foi exatamente— acionou a loucura.

Com arma mais primitiva, uma machadinha, praticou-se sábado (5), em Londres, um ataque que parece seguir o mesmo perfil: um cidadão isolado feriu três pessoas em uma estação de metrô, atribuindo seu ato a uma vingança pelos ataques que o Reino Unido acaba de começar a fazer na Síria.

Escrevo antes de surgirem mais detalhes, mas, como em San Bernardino, a polícia fala em terrorismo. Parece, de novo, alguém que, de repente, faz a mutação de cordeiro em lobo solitário.

O perigo, agora, é que se consolide a versão do jornal israelense ultraconservador "Israel Hayom", que, referindo-se a San Bernardino, diz que "o espírito do Estado Islâmico invade o Ocidente".

Fica-se, a prevalecer essa ideia, a um passo de enxergar todos e cada um dos muçulmanos como portadores do "espírito do Estado Islâmico".

Antes de caçar bruxas, é bom ler na Al Jazeera Khaled Beydoun, professor-assistente de Direito na Barry University, de Miami:

"Homens brancos cometeram a vasta maioria dos ataques em massa no solo norte-americano durante as duas décadas entre San Bernardino e as bombas de Oklahoma em 1995" [dois homens partidários da supremacia branca praticaram um atentado contra um prédio federal, no qual morreram 168 pessoas].

Há, pois, maus "espíritos" de todas as cores —o suficiente para que o medo vá se tornando companheiro de viagem até em vizinhanças insuspeitáveis como San Bernardino.


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