Folha de S. Paulo


Dilma faz meia autocrítica

Ao dizer que a política econômica adotada nos seis anos anteriores "chegou a um limite", a presidente Dilma Rousseff parece estar fazendo uma autocrítica, de resto tão reclamada pela oposição e por um punhado de analistas.

Mas, se é autocrítica, ficou na metade do caminho: a presidente não disse que a política anterior estava errada. Simplesmente esgotou-se.

Como economia não é ciência exata, fica aberta uma ampla avenida para se discutir se ela está certa ou está de novo incorrendo em engano (e até autoengano).

Mais relevante que essa discussão acadêmica é saber se a presidente considera definitivo o esgotamento do modelo seguido nos últimos seis anos (quatro deles sob seu comando) ou se pretende voltar a ele, uma vez feito o ajuste fiscal, também dissecado no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas).

Só o tempo dirá, mas no discurso parece evidente que Dilma virou a página da heterodoxia para abraçar a ortodoxia.

Afinal, ela disse que "todas essas iniciativas [as do ajuste fiscal] visam reorganizar o quadro fiscal, reduzir a inflação, para consolidar a estabilidade macroeconômica, aumentar a confiança na economia e garantir a retomada do crescimento com distribuição de renda".

É a tese dos ortodoxos: reorganizadas as contas públicas, o crescimento volta (a distribuição de renda, por enquanto, foi mais lenda que realidade e está sendo, de todo modo, revertida pela recessão profunda).

Para os heterodoxos, que prevaleceram no seu primeiro mandato, no entanto, o que cabe é o que a presidente disse ter sido feito anteriormente ("adotamos um amplo conjunto de medidas reduzindo impostos, ampliando o crédito, reforçando o investimento e o consumo das famílias").

A quase autocrítica de Dilma esbarra também em uma frase, a de que "hoje, a economia brasileira é mais forte, sólida e resiliente do que há alguns anos".

É uma temeridade soltar uma avaliação dessas em uma situação que beira o caos, mas também não se poderia esperar que uma chefe de governo dissesse o contrário para qualquer plateia, menos ainda para o mundo simbolicamente reunido na ONU.

Onde Dilma foi mais realista e mais acorde com o quadro contemporâneo foi na análise da ordem mundial.

A presidente, depois dos elogios de praxe às Nações Unidas, disse que a ONU "não conseguiu o mesmo êxito ao tratar da segurança coletiva, questão que esteve na origem da organização e no centro de suas preocupações".

Bingo: como diz Dilma, "a multiplicação de conflitos regionais –alguns com alto potencial destrutivo–, assim como a expansão do terrorismo que mata homens, mulheres e crianças, destrói patrimônio da humanidade, expulsa de suas comunidades seculares milhões de pessoas, mostram que a ONU está diante de um grande desafio".

A resposta previsível que a presidente daria ao desafio é reformar o Conselho de Segurança –o coração do sistema ONU– de modo a torná-lo mais representativo.

É uma posição histórica do Brasil, que pleiteia uma vaga, mas nem por isso deixa de ser uma análise correta.

O problema é que essa reforma não está à vista e, enquanto ela não vier, não se sabe como o Brasil se inserirá nas discussões sobre o combate ao terrorismo islâmico –reativadas, sempre na ONU, pelo presidente Vladimir Putin, ao defender a colaboração global com o ditador sírio Bashar al-Assad para derrotar o Estado Islâmico.

O Brasil não tem cacife para entrar nesse jogo, ainda mais no cenário de "transição" econômica que atravessa, para usar de novo a palavra da presidente.


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