Folha de S. Paulo


O papa, silêncio e ruídos

Relata Pablo Ordaz ("El País"), que viaja no avião papal:

"Das sete perguntas formuladas ontem [dia 22] ao papa Francisco no voo entre Santiago de Cuba e Washington, cinco traziam implícita a percepção de que se havia mos­tra­do de­ma­sia­do con­des­cen­den­te com o regime dos irmãos Fi­del e Raúl Cas­tro e, em contrapartida, havia ig­no­ra­do a re­pre­ssão aos dissidentes. As res­pos­tas de Jor­ge Ma­rio Ber­go­glio não somente não mudaram tal percepção como a acentuaram. O papa assegurou desconhecer que, durante sua visita, se produziram detenções de ativistas e confirmou que, em seu ânimo, nunca houvera disposição de reunir-se com a oposição".

Surpreso com o silêncio do papa, em franco contraste com o tremendo ruído que sempre provocam viagens papais, especialmente a de um pontífice midiático como Francisco?

Eu não. Se Bergoglio, como bispo na Argentina, foi silencioso, como a grande maioria de seus pares na ditadura argentina, por que se manifestaria contra outra ditadura?

De mais a mais, João Paulo 2º e Bento 16, antecessores de Francisco, tampouco fizeram manifestações memoráveis em suas visitas à ilha.

É preciso uma fé inquebrantável para achar que foi a frase de João Paulo 2º sobre a necessidade de Cuba abrir-se para o mundo, e o mundo para Cuba, a responsável, 17 anos depois, pelo degelo entre a ilha e os Estados Unidos.

Ruídos e silêncios à parte, "é necessário não perder a perspectiva", como diz editorial de "El País": "A solução da situação em Cuba não gira em torno do que um papa diga ou deixe de dizer".

Vale para Cuba ou para qualquer outro país em que Francisco e seus antecessores estiveram.

Ou o Brasil se tornou mais humano e mais cristão depois da badaladíssima vinda de Francisco para a Jornada Mundial da Juventude?

Do mesmo modo, a multidão que acompanhou João Paulo 2º não representou o início do fim do declínio da Igreja Católica no país.

É bom ter presente também que Francisco, tanto em sua viagem a Cuba como aos EUA, veste a mitra de "evangelista-chefe", como escreve na "Foreign Policy" Andrew Chesnut, estudioso de catolicismo na Virginia Commonwealth University.

Nesse papel, sim, João Paulo 2° melhorou as coisas para a igreja em Cuba, como descreve Peter Hakim (Diálogo Interamericano):

"Suas vitórias ali se viram limitadas a temas relacionados à Igreja Católica. O Natal recuperou o status de festa nacional, os católicos começaram a ser aceitos como funcionários, inclusive em altos níveis, e a igreja obteve certa autonomia do governo, convertendo-se na única organização independente na ilha, ao menos modestamente".

É razoável supor que esses avanços permitiram à igreja desempenhar papel relevante no degelo com os EUA, com o qual todos ganham, católicos ou não.

Não tem a dimensão espetacular das visitas papais, mas o mundo moderno não é propício a milagres.


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