Folha de S. Paulo


Imigração, duas caras e uma utopia

As dificuldades da Europa para implementar uma política comum de imigração acabam por obscurecer o outro lado do drama, o dos refugiados que, pobres demais, nem tentam alcançar o paraíso (sim, comparada com o inferno que se vive na Síria, por exemplo, mesmo uma Europa em crise e com movimentos xenófobos é o paraíso).

Na verdade, a imigração tem duas caras, conforme a descrição de Catherine Wihtol de Wenden, diretora de pesquisas da Science-Po de Paris:

"Estamos longe do trabalhador masculino pouco qualificado dos anos 1970/80, que vinha para trabalhar na fábrica. Hoje, os imigrantes não europeus que chegam à Europa são mais qualificados que a média de qualificação do país no qual entram".

Posto de outra forma, é mais fácil, em tese, integrar essas pessoas, mais qualificadas, do que ocorria anteriormente.

Pegue-se o caso da Alemanha: com um desemprego de 6,4%, o mais baixo desde a reunificação (1990), faltam no país 140 mil engenheiros, programadores e técnicos, segundo a BDA, a federação de empregadores.

O Instituto Prognos calcula que haverá uma carência de 1,8 milhão de pessoas, incluídos todos os setores, em 2020, e o dobro em 2040, se nada for feito.

Portanto, ao abrir as portas aos imigrantes, Angela Merkel demonstrou não apenas sensibilidade humanitária, mas também pragmatismo econômico.

A segunda cara da imigração, a mais pobre, "encontra refúgio, na maior parte, no seu próprio país ou nos países vizinhos", sempre segundo Catherine Wihtol de Wenden (Science Po).

Completa: "Eles não têm meios de vir à Europa. Falta-lhes dinheiro para pagar aos traficantes, o domínio de uma língua europeia, e um certo grau de conhecimento do país ao qual chegarão".

São justamente os vizinhos de países problemáticos, eles próprios às vezes igualmente problemáticos, que ficam com a carga maior da crise: dos 60 milhões de refugiados e deslocados que havia no mundo ao terminar 2014 (hoje, devem ser 62 milhões), 45% foram acolhidos por Turquia, Paquistão, Líbano, Irã, Jordânia e Etiópia.

Sem contar os deslocados internos na Síria, Afeganistão e Somália, países dos quais procedem mais da metade das pessoas que abandonam suas casas em busca da sobrevivência ou de uma vida melhor.

É óbvio que a Europa deveria fazer mais para acolher refugiados, mas é preciso igualmente entender que o afluxo é demasiado para ser absorvido de imediato. Afinal, são 42.500 pessoas que abandonam suas casas por dia, repito, por dia.

Mesmo que se divida essa população de deslocados por vários países, ainda assim é um número impossível de absorver no curto prazo.

Seria fundamental trabalhar nos países que originam o grande fluxo de refugiados e nos países vizinhos, que arcam com o peso maior da crise.

É como escreve a revista "The Economist":

"A responsabilidade recai não só na Europa, mas no mundo todo. É necessária uma política coordenada para gerenciar a crise síria ao longo de toda a cadeia de deslocamento".

Em outras palavras, não basta atuar no ponto de chegada, mas em todo o percurso, desde a origem.

Mais: "Tem de haver um esforço coordenado para conter a guerra [na Síria], começando com a criação de áreas protegidas. As agências da ONU, vergando sob o esforço, devem receber fundos adequados. Os vizinhos da Síria, que receberam a maior parte dos refugiados, necessitam ajuda para providenciar educação e empregos, não apenas campos [de refugiados] no deserto. Países de trânsito precisam de ajuda para administrar os fluxos humanos e devem absorver pelo menos alguns imigrantes".

Parece romântico, até utópico, mas a alternativa é mais mortos no Mediterrâneo e mais xenofobia nos países de chegada (lembre-se que haitianos foram hostilizados recentemente mesmo no Brasil, cuja presidente mostra-se de braços abertos para refugiados de outras procedências).


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