Folha de S. Paulo


A satanização da esquerda

A esquerda, espécime ameaçada na Europa, está emitindo sinal de vida no mais inesperado dos locais, o Reino Unido, que continua profundamente thatcherista.

Acontece que o líder em todas as pesquisas sobre a eleição para a liderança do Partido Trabalhista (o resultado será anunciado no próximo sábado, 12) se chama Jeremy Corbyn.

Aos 66 anos, deputado desde 1983, não tem problemas em rotular-se como socialista, em um partido que desde a era Tony Blair, iniciada em 1997, abandonou qualquer vestígio dessa ideologia.

Justin Tallis - 2.set.2015/AFP
Jeremy Corbyn conversa com a imprensa em Colchester, a cerca de 100 km de Londres
Jeremy Corbyn conversa com a imprensa em Colchester, a cerca de 100 km de Londres

Não sei se o que mais impressiona na ascensão de Corbyn é ela própria ou a virulenta reação que provocou até no trabalhismo.

Chegou a um tal ponto que o comediante Stewart Lee exagerou em artigo para o jornal "The Guardian": "Fora eu e Jeremy Corbyn, houve um outro homem, muito, muito tempo atrás, cujas sábias palavras eram frequentemente tiradas do seu contexto por tolos e estúpidos e usadas contra ele".

Nem Lee nem Corbyn são os novos Cristos, mas o candidato a líder trabalhista é capaz de pregar teses que parecem, de fato, saídas de outros tempos.

Corbyn defende, por exemplo, a reestatização dos setores energético e ferroviário, pede ações decisivas contra a mudança climática e para proteger os trabalhadores, eliminando os contratos precários.

É, obviamente, contra a austeridade, que se tornou a política virtualmente hegemônica na Europa (e no Brasil, ao menos retoricamente, neste Dilma-2).

É uma ousadia em um país em que o partido responsável pela austeridade, o Conservador, acaba de conseguir um sonoro triunfo eleitoral (embora o resultado seja produto das distorções causadas pelo sistema distrital puro que vigora no Reino Unido, como mostrou a coluna folha.com/no1627348).

A ascensão de Corbyn tem sido tratada como o renascimento da besta-fera.

Tony Blair, o premiê que conduziu o partido para o centro, diz que a vitória de Corbyn provocaria a "aniquilação" dos trabalhistas na próxima eleição.

Além do anátema que pesa sobre a palavra "socialista", Corbyn ainda luta contra acusações de antissemitismo. Ele é de fato um ativista da causa palestina, mas nega o antissemitismo. Chega a dizer que os judeus foram o povo que mais sofreu no século passado.

O deputado trabalhista está sendo comparado, por jornais europeus, ao Syriza, a coligação de esquerda radical que ganhou as eleições na Grécia, e ao Podemos, o partido criado a partir do movimento dos indignados na Espanha.

Ou a Bernie Sanders, candidato às primárias do Partido Democrata, nos EUA, e que também veste o rótulo de socialista.

Satanizar candidatos como os dois socialistas é amputar a democracia: o próprio Corbyn diz que o apoio à sua candidatura, em especial o dos jovens, indica que, "em uma era despolitizada, estão interessados na ideia de que é possível discutir políticas alternativas".

Sanders, por sua vez, define seu socialismo democrático como a "criação de um governo que reflita os interesses das pessoas comuns em vez do dos bilionários".

São teses que deveriam ter o seu espaço no supermercado das ideias políticas.


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