Folha de S. Paulo


A democracia vive, mas deve

O presidente da Guatemala, o general Otto Pérez Molina, acaba de renunciar. Ato seguido, foi preso. Não obstante, os guatemaltecos vão às urnas neste domingo (6) para eleger o sucessor, sem que haja o menor sinal de movimentos golpistas contra as instituições.

É uma evidência de que, apesar das dificuldades econômicas e de todas as chagas sociais, a América Latina deu alguns passos importantes na direção do respeito às regras do jogo e às leis.

Neste século, seis presidentes deixaram o poder antes do prazo previsto, mas só um deles, o hondurenho Manuel Zelaya, foi vítima de um golpe mais ou menos convencional.

Fernando de la Rúa foi expulso da Casa Rosada (2001) a golpe de "cacerolazos", não de baionetas.

Em 2003, o boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada também foi defenestrado a partir de manifestações populares.

Mais dois anos, e cairia Lucio Gutiérrez (Equador), sitiado pelo movimento indígena.

Depois, veio Zelaya (2009). Em 2012, o que se poderia chamar de "golpe parlamentar" apeou do poder o paraguaio Fernando Lugo. O mandatário não teve o devido direito de defesa, daí a designação de "golpe". Mas não o clássico, com tanques nas ruas.

Por fim, cai agora Pérez Molina, igualmente sitiado por um formidável movimento de protestos.

Se se quiser recuar um pouco mais no tempo, o Brasil operou limpamente o primeiro impeachment da sua história, afastando profilaticamente Fernando Collor de Mello, sem que a institucionalidade ficasse minimamente abalada.

Essa é a parte bonita da história. Falta agora que a democracia, aparentemente consolidada na região, seja para o benefício de todos —uma percepção inexistente.

O mais recente Latinobarômetro, a mais abrangente medição dos humores da região, mostra que apenas 30% dos latino-americanos, na média, dizem que se governa em benefício de todos.

O modo como funciona a democracia teve, em 2013, o mais elevado índice de aprovação, é verdade, mas apenas 40% se dizem "muito" ou "algo" satisfeitos com o funcionamento democrático.

Na Guatemala que vota hoje, a porcentagem é bem inferior (25%).

Fácil de explicar: a prisão de Pérez Molina, acusado em um processo sobre corrupção na alfândega, nem remotamente coloca um ponto final nos esquemas de pilhagem dos recursos públicos.

Luis Solano, analista do sítio Plaza Pública, uma interessante mídia alternativa, diz o seguinte a respeito:

"Caiu a ponta do iceberg. Décadas de corrupção alfandegária ainda esperam uma investigação que chegue ao núcleo de tudo. Essa estrutura histórica continua em vigor. Continua entronizada nas instituições-chave do Estado, e não apenas em sua forma de fraude alfandegária. Continua em suas outras variantes, nessas onde os contratos com fornecedores privados são parte da espoliação do Estado; das estruturas criminais de negócios ilícitos, como o narcotráfico, ou dos grandes evasores fiscais, que apontam para o grande empresariado".

Qualquer semelhança com o petrolão não é mera coincidência. A democracia felizmente está viva e sólida, mas ainda é devedora.


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