Folha de S. Paulo


O divórcio rua/urna e o Congresso

Já não importava tanto o número de manifestantes, ao contrário do que ocorrera no ato contra Dilma Rousseff de março.

Naquela ocasião, só uma multidão na rua demonstraria o tamanho do repúdio à presidente. Agora, nem tanto.

O Datafolha se antecipou, com sua pesquisa que mostra a impopularidade recorde de Dilma.

É óbvio que seria impraticável colocar nas ruas todos os que estão descontentes com Dilma ou, até mesmo, o número relativamente menor dos que defendem o impeachment.

De todo modo, a massa que desfilou neste domingo (16) é a corporificação a quente dos gráficos frios da pesquisa de (im)popularidade.

Jorge Araújo/Folhapress
Manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, contra o governo federal
Manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, contra o governo federal

Gente na rua sempre impressiona, ainda mais em um país de escassíssima tradição de mobilização popular –e, pelo amor de Deus, não me venham os hidrófobos governistas ou esquerdistas dizer que não era povo quem estava nas ruas, era a classe média.

Sim, era. Mas todas as mobilizações de massa no Brasil foram, sempre, coisa de classe média, inclusive (e principalmente) aquelas que a esquerda aplaudiu.

Essa falsa polêmica (povo x classe média) ou a contagem de cabeças (mais gente/menos gente) é inócua. O relevante é perguntar o que vem agora que o público já deixou a rua.

Eu não sei, até porque sou incapaz de fazer previsões, a não ser sobre o passado –e, no Brasil, até o passado pode surpreender.

Arrisco, no entanto, um palpite, com toda a precariedade dos palpites: pouco ou nada de realmente significativo decorrerá dos protestos.

Por uma razão básica: há uma profunda desconexão entre a rua e o disfuncional sistema político brasileiro e entre as urnas e a superestrutura política.

Exemplo de irracionalidade: o PT elegeu a presidente, com mais de 50% dos votos, mas não tem nem remotamente a maioria do Parlamento.

Se tivesse, o governo Dilma 2 seria outro, certamente mais bem avaliado, não pelas qualidades do PT, mas pelo fato de que pior do que está não pode ficar.

Da mesma forma, o PSDB, que ficou perto dos 50%, não tem no Congresso representatividade minimamente equivalente.

Consequência: as massas que ocuparam as ruas não têm com quem negociar a criação das condições para o impeachment, que só pode se dar pelo Congresso, já que foi desterrada felizmente pela história a hipótese de golpe militar, só defendida por uma minoria de hidrófobos da direita.

A falta de funcionalidade política leva a um quadro paradoxal: o partido que elegeu a presidente não tem maioria para impor um programa que possa resgatá-la do fundo do poço (no discutível pressuposto de que um e outra tivessem competência para tanto).

O partido que ficou em segundo lugar, por sua vez, tampouco tem maioria para costurar a saída da presidente.

Resultado: a governabilidade caiu no colo do PMDB, que não teve um único miserável voto para a Presidência (a carinha do vice, peemedebista, nem aparece na urna eletrônica).

Logo, não tem compromissos nem com a presidente, nem com o país, nem com a rua.

A não ser que esta resolva rugir com mais força do que a demonstrada até agora.


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