Folha de S. Paulo


E para relíquias humanas, nada?

De Irina Bokova, a diretora-geral da Unesco: "A sistemática destruição de componentes icônicos da rica e diversificada herança do Iraque, que temos testemunhado nos meses recentes, é intolerável e deve parar imediatamente".

De acordo, Irina. Ainda mais agora que o EI (Estado Islâmico) tomou a cidade de Palmira, a chamada pérola do deserto, uma espécie de berço da civilização. Falta, no entanto, idêntico apelo (e, muito mais que apelo, ação) para deter a destruição do que, do meu ponto de vista, é ainda mais valioso, as vidas humanas.

Os números sobre mortes e deslocamento populacional na Síria são apocalípticos.

Admito que não é fácil encontrar fórmulas para pôr fim aos combates nos dois países, mas não parece razoável que o mundo assista inerme à destruição de ambos.

Suspeito que o primeiro passo seria reconhecer o óbvio: Síria e Iraque são, hoje, Estados falidos. Nessa condição, torna-se quase natural que acabem dominados pelo EI, uma presunção reforçada pela tomada, na semana passada, de Ramadi (Iraque) e Palmira (Síria).

No caso do Iraque, diz, por exemplo, Richard Haass (Council on Foreign Relations): "Embora os EUA estejam fazendo muito no Iraque, estão apoiando um governo que não pode ser bem sucedido. O velho, multiétnico Iraque acabou, e os EUA devem parar de basear sua política na ideia de manter o país intacto".

Reforça um político sunita iraquiano não identificado na "The Economist": "A divisão do país já é uma realidade, tem só que ser posta no mapa".

Sou casual testemunha ocular da impotência do governo iraquiano diante dos extremistas islâmicos: em janeiro em Davos, o premiê Haider al-Abadi me disse que esperava retomar Mossul. Seria, achava ele, fundamental para desmontar a atratividade do EI, por ter sido a primeira grande cidade iraquiana em que se instalou.

Quatro meses depois, não só Mossul ainda está em mãos do EI como os fanáticos tomaram Ramadi, no outro extremo da região em que se tornaram dominantes.

Consequência: "Os sonhos de uma ofensiva para derrotar o EI em Mossul neste ano estão agora destroçados. Em vez disso, o Iraque focará recursos e atenção em liberar Ramadi, que fica apenas 90 km a oeste de Bagdá", escreve Hayder al-Khoei, pesquisador associado da Chatham House, importante centro britânico de pesquisas.

Sobre o colapso da Síria, basta ler o que escreveram Anne Barnard e Hwaida Saadmay para "The New York Times", a propósito da tomada de Palmira: "Anos de guerra, fricções e corrupção deixaram as forças governamentais desmoralizadas e, particularmente na Síria, esvaziadas".

É sintomático que o Exército sírio, pelo relato do "NYT", não foi derrotado em Palmira; simplesmente fugiu, abandonando os civis à própria sorte.

Logo, o mundo precisa, urgentemente, pensar em algo que substitua dois Estados incapazes de proteger não só relíquias, mas vidas humanas. A alternativa é "o califado do EI tornar-se parte permanente da região", como diz "The Economist".


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