Folha de S. Paulo


Rio, mas pode chamar de Haiti

O velho sábio que habitava esta Folha costumava dizer que vivera o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também.

Achava que eu também havia chegado a esse estágio em que nada me surpreenderia. Até sábado, 2 de maio de 2015, quando o título "Preferimos o Haiti" apareceu no caderno "Cotidiano" e foi como um soco no estômago.

Como é possível que o Exército brasileiro considere mais fácil uma missão pacificadora em um Estado falido, como o é o Haiti, do que no coração do próprio Brasil, na sua cidade mais emblemática e mais bonita?

O general Fernando Azevedo e Silva, chefe do Comando Militar do Leste, foi explícito: "Nossas ações ali [no complexo da Maré] foram limitadas, tornando a ação muito mais difícil do que em outras ocasiões".

O general expõe uma das limitações: diferentemente do que aconteceu durante a ocupação no Alemão ou durante os dez anos no Haiti, o Exército não pode realizar buscas em residências nem ocupar imóveis que comprovadamente pertenciam a criminosos. Fica claro, portanto, que o Estado brasileiro é tolerante em relação ao crime organizado (além de incompetente em relação ao crime desorganizado).

Tolerância, de resto, igualmente explicitada na negociação que a Prefeitura de São Paulo levou a cabo com os traficantes antes de uma desastrada operação na cracolândia, na semana passada.

Segundo o general Azevedo e Silva, a missão na Maré é mais complicada do que no Haiti porque, na favela carioca, "há três facções com disputas internas".

Quer dizer o seguinte: as autoridades são capazes de identificar as gangues em operação na Maré, o que implica saber quem são os seus líderes, mas não são capazes de prendê-los e/ou de controlar as suas atividades criminosas.

Ou, posto de outra forma, as autoridades, no Rio ou em São Paulo ou em outras partes do país, preferem negociar com o tráfico, como ocorreu no caso da cracolândia e em episódios anteriores no Rio de Janeiro, a reprimi-lo.

Parêntesis: sou dos que acham que a guerra às drogas, da forma como está sendo conduzida no mundo, é um fracasso. Mas, enquanto não houver outro arcabouço institucional para lidar com o assunto, guerra é guerra, não negociação com criminosos.

O fato concreto é que nunca neste país, antes como agora, se deu à questão da segurança pública o tratamento prioritário que merece.

Permitiu-se que o Estado perdesse o monopólio no uso das armas. Permitiu-se que o crime, organizado ou não, assumisse territórios em que impõe a lei, a sua lei.

Que isso aconteça no Haiti é lamentável, mas dá pelo menos para entender. O país foi vítima de uma ditadura, a do "Papa Doc" (1957-71), continuada por seu filho, o "Baby Doc", durante as quais se deu a um grupo paramilitar, os Tonton Macoute, poder de vida e morte sobre os haitianos.

Desorganiza qualquer país por um período longo. No Brasil se está tolerando uma nova versão dos Macoute, que é o narcotráfico, mais fortemente armado. É natural que até os militares prefiram o Haiti.


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