Folha de S. Paulo


Classe média à la carte

É má-fé ou ignorância (ou ambas as coisas juntas) satanizar a classe média pelas manifestações contra o governo.

Má-fé porque a classe média, como qualquer outro segmento, tem todo o direito de se manifestar, contra ou a favor do governo. É uma obviedade, eu sei, mas ter que escrever tão tremenda obviedade é um sinal da indigência do debate público brasileiro.

Ignorância porque a classe média foi o motor de TODAS as manifestações que a esquerda considerou épicas. Foi o tal de povo, por acaso, que esteve presente em massa nos atos pela anistia? Foi o tal de povo, por acaso, que se mobilizou pelas "diretas-já", o maior movimento de massas da história recente (e não tão recente)?

Foi o tal de povo que pintou a cara de verde-e-amarelo para pedir o impeachment de Fernando Collor de Mello? As cores e o pedido valiam então, mas não valem agora só porque os que se acham de esquerda estavam na época do outro lado?

Em todos esses casos, foi a classe média que se manifestou. A satanização de agora demonstra que, para certo tipo de mentalidade cretina, há uma classe média "boa" (quando ela está do lado desse tipo de cabecinha) e uma classe média "podre" quando está do outro lado.

Revela acentuada dificuldade de conviver com opiniões contrárias.

É estúpido tratar a classe média como um ente homogêneo. Segmentos da classe média se mobilizaram contra o governo João Goulart e ajudaram a derrubá-lo. Péssimo exemplo, para o meu gosto, assim como é péssimo exemplo tratar agora de repetir a história, aproveitando-se do disseminado desconforto com o governo (desconforto, diga-se, que é também do tal de "povo", a menos que se acredite que a classe média abrange 87% dos brasileiros, os que desaprovam o governo Dilma).

Mas foram também segmentos da classe média que, primeiro, tomaram as armas para tentar derrubar o regime e, depois, foram às ruas para protestar contra ele e ajudar a encerrá-lo.

Não é muito diferente fora do Brasil. Na Argentina, por exemplo, foi a classe média que constituiu o grosso do grupo de esquerda armada Montoneros, que se opôs primeiro ao governo de Isabelita Perón e depois à ditadura militar.

Foram de classe média ou até alta alguns dos grandes líderes revolucionários do século passado. Ou alguém acha que Vladimir Ilitch Lênin era "povão"? Ou Leon Trótski?

A rigor, apenas Emiliano Zapata, o treinador de cavalos que liderou a primeira revolução social do século 20, a mexicana, era filho do povo. Até Mao Tsé-tung, filho de camponeses, logo ascendeu à classe média, pela via de seus estudos.

Voltemos ao Brasil. É de supina ingenuidade imaginar, como fazem alguns, que o povo pobre vai se sublevar, movido pelo desemprego, baixos salários e/ou fome.

Nunca o fez, apesar das condições desumanas em que vive faz séculos. Menos ainda o fará agora quando as condições melhoraram, um tiquinho de nada, mas melhoraram. Você pode amar ou odiar a classe média, mas pegar dela apenas o pedaço que lhe agrada é desonesto.


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