Folha de S. Paulo


Nem todo profeta é santo

À parte o politicamente correto, sejamos pelo menos pragmáticos: se o islamismo fosse intrinsecamente violento, haveria 1,6 bilhão de bombas humanas espalhadas pelo planeta, que tantos são os praticantes da religião. E, se fosse assim, qualquer hipótese de convivência estaria arruinada.

Os acontecimentos da semana na França só levam água ao moinho do argumento pragmático: embora o país abrigue o maior número de muçulmanos entre seus pares europeus, praticamente ninguém saiu em auxílio dos terroristas que atacaram o "Charlie Hebdo". Apenas um casal tentou apoiá-los na fuga, quando já estavam cercados.

Se houvesse uma violência intrínseca ao islamismo, o lógico era que multidões saíssem em socorro dos que se autoproclamaram vingadores do profeta.

Torna-se inevitável concordar com Yascha Mounk, pesquisador da "New America", instituição dedicada a "renovar a política norte-americana", quando ele escreve para a "Slate": "O terrorismo do Estado Islâmico e da Al Qaeda não define o islã mais do que as Cruzadas ou a Inquisição definem o cristianismo".

Estabelecido o ponto, passemos ao raciocínio seguinte de Mounk: "Mas, assim como nenhum historiador pode encontrar sentido na natureza das Cruzadas sem encarar seriamente as crenças religiosas de seus protagonistas, assim também é impossível encontrar sentido no terrorismo islâmico sem considerar seriamente as motivações religiosas daqueles que o perpetram".

Tradução minha: o Alcorão, assim como os textos básicos de todas as religiões, pode ser interpretado de diferentes maneiras e, portanto, fornecer argumentos para o amor ou para o ódio.

Tome-se, por exemplo, o seguinte trecho do livro sagrado dos muçulmanos: "Quem mata uma pessoa, sem que haja cometido um crime ou semeado a corrupção na Terra, é como se tivesse matado toda a humanidade".

Um muçulmano racional diria que os matadores do "Charlie Hebdo" mataram toda a humanidade e são, portanto, execráveis. Mas um clérigo fanático ensinaria que os cartunistas semearam a corrupção na Terra ao ridicularizar o profeta, e, portanto, deveriam ser mortos.

O ponto aqui, se se quer combater o terrorismo, é cercar os profetas do ódio, disseminados nas comunidades muçulmanas e que os serviços de inteligência têm a obrigação de saber quem e quantos são e onde estão. As autoridades religiosas muçulmanas também precisam contribuir para esse cerco, sob pena de aumentar ainda mais a já inquietante islamofobia.

Segundo o "Coletivo contra a Islamofobia na França", o número de atos violentos contra muçulmanos aumentou 47% de 2012 para 2013 e deve ter batido o recorde em 2014.

Fecho de novo com Mounk, que, como judeu, teria em tese motivos para ser islamofóbico:

"Muitas das pessoas que atacam muçulmanos com base na afirmação de que eles não querem aceitar valores liberais estão elas próprias rejeitando o mais básico dos credos liberais, o de que alguém deveria ser aceito como membro pleno de uma nação independentemente da cor de sua pele ou de seu credo".


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