Folha de S. Paulo


Entre Alá e o Diabo

Do presidente Barack Obama, no pronunciamento em que anunciou a guerra ao EI (Estado Islâmico): "Guiados pelos valores que nos sustentam, só vamos ficar ainda mais fortes".

Pena que os valores que sustentam internamente os Estados Unidos não sejam adotados também em sua política externa, do que dá prova a coalizão que apoiará a guerra contra o EI. Dos dez países árabes convocados, apenas Líbano e Iraque não são ditaduras plenas, ainda que o teor de democracia em ambos não seja muito elevado.

Os outros são Egito, Arábia Saudita (aquele país em que as mulheres nem sequer podem dirigir, lembra-se?), Qatar, Jordânia, Omã, Emirados Árabes, Kuait e Bahrein.

A guerra ao EI pode até derrotá-lo, dada a disparidade de forças, mas não vai resolver o dilema que está na sua origem: o mundo árabe/muçulmano parece condenado a escolher entre ditaduras e o radicalismo islâmico. Falta uma peça nessa equação, que são justamente os valores invocados por Obama e que podem ser resumidos em democracia liberal, respeito aos direitos humanos e às minorias, liberdade religiosa –enfim, o conjunto de regras de que o Ocidente se orgulha, ainda que nem sempre pratique.

É a opinião até de Dennis Ross, que foi assistente especial do presidente Obama para o Oriente Médio e o Sul da Ásia até 2011 e é pesquisador do Instituto de Washington para Política do Oriente Próximo.

Escreve Ross: "O Despertar Árabe de 2011 não conduziu a uma era de democracia, nem poderia. As instituições da sociedade civil eram muito fracas; a cultura política de o vencedor-leva-tudo muito poderosa; e a crença no pluralismo demasiado incipiente".

Reforça Frederic Wehrey, do programa de Oriente Médio do centro Carnegie, trazendo a análise para o EI: segundo ele, o discurso do grupo "é mobilizador devido à ausência de instituições críveis e inclusivas, que pudessem mitigar o apelo de identidades sectárias tóxicas e vozes religiosas radicais".

Essa análise pode levar à tentação de concluir que o mundo árabe/muçulmano tem uma incompatibilidade genética com a democracia e seus valores, o que é o pano de fundo do "Choque de Civilizações", a polêmica obra do cientista político Samuel Huntington.

Confesso que fica cada vez mais difícil para quem não acredita nessa tese, a meu ver preconceituosa, defender o contrário.

Em todo caso, há dois fatos: primeiro, Turquia, Indonésia e Tunísia, países de maioria muçulmana, livraram-se de ditaduras e estão cultivando democracias, claro que com os problemas naturais do parto.

Segundo, pesquisa recente do Centro Pew com 14 mil pessoas de 14 países, todos muçulmanos, revelou forte rejeição ao radicalismo islâmico. E a chamada Primavera Árabe, embora fracassada na sua primeira floração, pôs grandes massas nas ruas, clamando por democracia.

Se o Ocidente tivesse ajudado com a expertise na construção institucional, talvez não precisasse de soldados agora.

PS - Dou 10 dias de férias ao leitor.


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