Folha de S. Paulo


Para entender (e driblar) Putin

Se a Rússia, como disse o presidente Vladimir Putin, pode ocupar Kiev, a capital ucraniana, em apenas dois dias, a pergunta seguinte inevitável é esta: por quê, então, ele prefere uma invasão indireta do leste da Ucrânia, região que, com o uso de tropas regulares, cairia em horas, não dias?

A resposta convencional é que Putin não quer aumentar o nível de provocação ao Ocidente, mesmo que saiba que não haveria resposta militar em caso da tomada da Ucrânia inteira.

Mas a resposta heterodoxa –e provavelmente mais correta– é de Vladimir Lukin, que foi comissário de Direitos Humanos no governo Putin até março e delegado russo às negociações de paz entre a Rússia, a Ucrânia e o Ocidente, em fevereiro passado:

"Ninguém no Kremlin necessita da República Popular de Donetsk, da República Popular de Lugansk [como se autodenominam as regiões separatistas do leste] ou da Nova Rússia [uma Rússia expandida para seu entorno imediato]", disse Lukin em recentíssima entrevista para a revista liberal "Novoye Vremya" (Novos Tempos).

Não só não necessita como rejeita, sempre segundo Lukin: "Ganhar Donbas [a bacia do Don, que engloba as duas regiões separatistas] e perder a Ucrânia seria uma derrota para o Kremlin".

Perder a Ucrânia já é um fato: a inclinação pela Europa, demonstrada pelas manifestações que levaram à queda do presidente pró-russo Viktor Yanukovich e ratificada pela eleição de Petro Poroshenko, são evidências contundentes.

O jogo de Putin, agora, é negociar uma situação em que as duas regiões dominadas pelos separatistas sirvam de habeas-corpus contra a eventualidade de a Ucrânia aderir à Otan ou à União Europeia, a aliança militar originalmente concebida contra a União Soviética e "resetada" agora contra a Rússia (e também contra o Estado Islâmico, mas esta é outra história).

Explica Lukin: "Qualquer referendo para aderir a qualquer bloco terá que realizar-se em todas as regiões e, se uma for contra, então a Ucrânia não poderia aderir".

Por isso, é melhor para o Kremlin que Donetsk e Lugansk fiquem na Ucrânia, desde que com um estatuto que lhes dê o máximo de autonomia e, portanto, em condições de inclinar-se para a Rússia.

Seria a melhor maneira de ter o bônus de não perder inteiramente a influência na Ucrânia sem o ônus de arcar com a recuperação da duas províncias rebeldes.

A produção industrial em Donetsk caiu 29% e, em Lugansk, ainda mais (56%). No conjunto das duas províncias, houve um declínio de 46% da indústria leve, 41% da indústria química, 34% na indústria de máquinas, 22% na produção de materiais de construção, 19% na indústria farmacêutica, 13% em metalurgia e na indústria do carvão.

Uma Rússia que já está em crise econômica não teria condições de investir nessas áreas. Já são eloquentes as dificuldades na Crimeia, anexada pela Rússia, que fica horas sem luz, todos os dias, porque 80% de sua eletricidade são fornecidos pela Ucrânia, que cortou o suprimento, como reação à anexação.

Tudo somado, verifica-se que o desenho traçado por Lukin faz todo o sentido e é com base nele que se pode ver o acordo de cessar-fogo alcançado entre as partes. A Rússia será claramente a parte forte nas negociações que se seguirão.

Há, no mundo acadêmico, quem proponha um drible em Putin, na forma da entrega à Russia das regiões rebeldes.

É o caso, por exemplo, de Anatol Lieven, professor da Escola de Serviço Externo da Georgetown University no Qatar, em recente artigo para o "New York Times":

"A escolha é entre uma Ucrânia com uma região de Donbas autônoma, ao lado de uma chance real de desenvolver a democracia e a economia do país em direção ao Ocidente, em vez de uma Ucrânia atolada em meia dúzia de conflitos que minarão qualquer esperança de progresso".

Se fosse xadrez, seria um gambito perfeito: sacrificar uma peça (no caso o Donbass) para ganhar uma vantagem estratégica.

O problema é que o xadrez não vive de sentimentos, ao contrário da crise ucraniana em que há sentimentos nacionalistas exacerbados, o que pode tornar o gambito improvável ou até impossível.


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