Folha de S. Paulo


O início de um eixo anti-EUA

O mega-acordo para o fornecimento de gás pela Rússia à China terá efeitos apenas simbólicos sobre a crise ucraniana –o grande motivo da tensão entre a Rússia e o Ocidente–, mas é um passo para a eventual constituição no futuro de um eixo anti-Estados Unidos.

Como o gasoduto que levará o gás da Sibéria à China só ficará pronto em 2018, é óbvio que não servirá para desfazer a presente dependência da Rússia do mercado europeu para o seu gás.

Até 2018 ou a crise ucraniana estará resolvida por bem ou o rompimento dos laços Rússia/Europa já terá sido amplo e irrestrito.

De todo modo, efeitos simbólicos não são irrelevantes em diplomacia: o mega-acordo sinaliza, claramente, que a política de isolamento da Rússia comandada pelos EUA não está funcionando plenamente, exatamente como se gabou ontem o presidente da Duma, o Parlamento russo, Serguei Narishkin.

É um fato que Vladimir Putin poderá esfregar na cara dos europeus quando se reunir com eles (e com Barack Obama) no mês que vem, em vez de ficar apenas na defensiva ante a inevitável pressão dos parceiros-adversários sobre sua atuação na Ucrânia.

Mas o mais importante virá depois.

Primeiro na própria questão do gás. Rússia e Europa são reféns uma da outra. Nem a Europa pode dispensar o gás russo nem a Rússia pode dispensar os euros que recebe por ele e que são essenciais no seu orçamento.

Com o acordo com a China, a Rússia dá um primeiro passo para libertar-se dessa dependência, ao passo que a Europa não consegue nem imaginar como fazê-lo.

Esse aspecto econômico-energético não é, no entanto, o mais relevante. Na conferência que levou Putin a Xangai (a Cica, ou Conferência sobre Interação e Construção de Medidas de Confiança na Ásia), o presidente chinês, Xi Jinping, sugeriu a constituição de uma nova estrutura de cooperação para a segurança na Ásia que inclua a Rússia e o Irã e, obviamente, exclua os EUA.

É mais um passo no sentido de tentar redesenhar a ordem global, fugindo da predominância norte-americana.

O Brasil tem algo a ver com essa história toda, porque os Brics também são vistos como um peão nesse xadrez, até agora sem muita força.

De todo modo, é apenas o início de uma história que não será um piquenique no campo, a julgar pelo que escreve para "The National Interest" Nikolas Gvosdev, professor de Estudos de Segurança Nacional da Escola de Guerra Naval dos EUA:

"Moscou e Pequim têm, tradicionalmente, feito seguros para as relações entre eles. A China, claro, não quer prejudicar seus laços, muito mais lucrativos, com o Ocidente ao unir-se à Rússia em uma cruzada anti-Ocidente, enquanto a Rússia teme ser atraída para a órbita chinesa e, eventualmente, reduzida à posição de parceira júnior de Pequim".

A propósito, a conferência que serviu para o anúncio do acordo Rússia-China, aprovou declaração em que se lê:

"Não respaldaremos quaisquer movimentos e entidades separatistas no território de outro Estado-membro".

A Ucrânia é observadora da Cica. Vale para ela?


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