Folha de S. Paulo


O jornalismo sobreviverá ao papel?

Na primeira vez em que um especialista, cujo nome já esqueci, ousou cravar uma data (2043) como o ano em que circularia a última edição em papel do último jornal do planeta, dei de ombros: em 2043, teria 100 anos e já estaria morto ou, na pior das hipóteses, vivo mas aposentado.

O problema seria portanto da garotada que está começando, não meu.

Começo agora a ter segundos pensamentos. Talvez o papel não chegue a 2043, a julgar pela decisão do "Financial Times" de priorizar a edição digital em detrimento da edição impressa --ou como complemento, depende do ponto de vista.

O "FT" é ou era um das últimas publicações que eu esperava ver migrar do papel para o digital. Como eles têm certezas absolutas sobre a economia de todo e qualquer país, sobre a economia internacional e sobre cada empresa mais ou menos relevante, imaginei que soubessem tudo também sobre o próprio negócio e, portanto, jamais seriam envolvidos pela crise que afeta a mídia no mundo inteiro.

O anúncio de que a estratégia --batizada de "digital first"-- vai mudar mostra que até essa bíblia do mundo financeiro sofre com a queda de circulação. O "FT" começou o ano com uma redução nas vendas de quase 4% em relação aos números com que fechara 2012.

Mas, atenção, o fim do jornal impresso pode ser antes de 2043, como muita gente diz, mas pode ser também depois, até mesmo na avaliação de Lionel Barber, o editor do "Financial Times" e principal porta-voz da mudança de estratégia. Vejam o que ele disse em entrevista de julho para a Columbia Review of Journalism:

Pergunta - Não haverá um momento em que fará sentido parar de imprimir o jornal? Uma porção de jornais está tentando adivinhar quando e se isso acontecerá...
Lionel Barber - Nunca entro nesse debate porque, primeiro de tudo, o impresso é valioso. É absolutamente óbvio para mim que um certo grupo de pessoas quer ler o jornal impresso. Acabo de passar três dias em Nova York. Tive entrevistas com pelo menos cinco líderes de firmas de Wall Street, e eles compram uma ou duas edições do jornal. Eles assinam, uma para casa, outra para o escritório. E não querem lê-lo no seu computador. Leem no papel. E, o que é interessante, dois deles disseram que acreditam realmente que ler um jornal é uma forma mais profunda de ler porque você se concentra mais no que está ocorrendo na página impressa [do que no computador].

Deus dê longa vida a esse tipo de pessoas porque o jornalismo precisa de tempo para desenhar um modelo de negócios que permita ou a convivência papel/digital ou como ganhar dinheiro com jornalismo na internet.

Quando digo ganhar dinheiro, quero dizer dinheiro suficiente para manter redações pletóricas como as que existiram nos melhores momentos do jornalismo impresso.

Hoje, o que está havendo, nas redações do mundo inteiro, é um verdadeiro genocídio de postos de trabalho, até porque as demissões do pessoal do papel não são acompanhadas de contratações equivalentes no mundo digital. O próprio "FT" é um exemplo: ao anunciar o "digital first" no início do ano, deixou claro que haveria 35 demissões na redação-papel, para apenas 10 contratações para a área digital.

Ou seja, 25 vagas foram para o espaço, em uma redação de aproximadamente 600 pessoas, o que dá um corte de cerca de 4%.

Não é difícil supor que haverá, agora, novos cortes, porque o "FT" suprimirá todas as edições regionais em papel, exceto a da própria sede, Londres.

O que há de positivo no novo modelo é que ele pretende romper a sabedoria convencional que diz que o digital é imediatista e o papel é o aprofundamento. Lionel Barber diz que o "FT" precisa ser rápido, o que é óbvio, mas "não mais rápido do que todo o mundo porque precisamos ser cuidadosos em não apressar julgamentos ou correr atrás do último rumor. Isso é perigoso".

É uma tese que sempre defendo quando discuto jornalismo com meus botões: o importante não é dar a notícia primeiro, mas dar bem a notícia. Se se puder fazer ambas as coisas ao mesmo tempo, tanto melhor, mas, do meu ponto de vista, qualidade é mais relevante do que o imediatismo para a credibilidade de uma empresa jornalística.

Acho até que ser o primeiro em noticiar algo é uma preocupação mais de jornalistas do que de leitores. Para estes, que diferença faz, por exemplo, quem anunciou primeiro que Cristina Kirchner seria operada? Mais interessante é saber as consequências da operação para o futuro político do país, certo?

Se o tão badalado "FT" firmar esse modelo de pressa sem açodamento, mas com qualidade, talvez as redações comecem de novo a ter um número de profissionais adequado para desenvolvê-lo todos os dias.

Nessa hipótese idílica, tanto faz se o papel sobreviverá ou não ao digital. O jornalismo --e os jornalistas-- sobreviverá, e isso importa mais do que a forma pela qual ele é apresentado ao público.


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