Folha de S. Paulo


Fala mais, Pepe, fala

O presidente do Uruguai, José "Pepe" Mujica, realizou antigo sonho meu, o de saber o que verdadeiramente pensam os governantes uns dos outros.

A frase de Mujica sobre Cristina Kirchner ("Esta vieja es peor que el tuerto", sendo "el tuerto" o vesgo Néstor Kirchner) diz mais sobre as relações bilaterais --e, de quebra, sobre a catatonia do Mercosul-- do que as toneladas de documentos oficiais que os governantes assinam cada vez que se reúnem.

A frase é deselegante, para dizer o mínimo, é politicamente incorreta e nem é factualmente verdadeira. Primeiro, porque não dá para um homem de 77 anos como Mujica chamar de "vieja" uma mulher de 60 anos como Cristina.

Nem dá para afirmar que Cristina é mais teimosa que seu marido morto. Não que ela não seja teimosa e obstinada. É. Principalmente quando se trata de defender o que considera o interesse nacional. Nesse ponto, aliás, ela e Dilma Rousseff são rigorosamente iguais, o que ajuda a entender porque as relações Brasil/Argentina não passam exatamente pelo seu melhor momento.

Cristina acha que por vezes o interesse argentino colide com o do Brasil e vai para o choque. Nos tempos de Lula/Néstor, o lado brasileiro cedia sempre, no pressuposto de que era do interesse do Brasil evitar dificuldades ao país vizinho, em penoso processo de recuperação depois do desastre dos governos Carlos Menem/Fernando de la Rúa.

Dilma, no começo, ainda manteve alguma condescendência. Agora, não mais. Deixem um microfone aberto perto dela e ouvirão algo não muito diferente do dito por Mujica, respeitado o politicamente correto, que Dilma não é desbocada.

Volto a Uruguai/Argentina. Quando Néstor era presidente, nem falava com seu colega uruguaio da época, Tabaré Vázquez. Era uma tremenda saia justa para os diplomatas brasileiros tratar de acolchoar reuniões de cúpula do Mercosul para evitar pôr os dois na mesma sala.

Tudo por causa da divergência sobre a instalação, no lado uruguaio da fronteira, de uma fábrica de celulose que prejudicaria a Argentina, na opinião dos argentinos.

Foi com Cristina/Mujica que o ambiente se distendeu. Mas voltou a azedar faz pouco, por causa de outra obra, a dragagem no canal Martín García, situado no Rio da Prata e de administração compartilhada.

A encrenca agora se dá porque o Uruguai apontou tentativa de suborno ao embaixador que o representa na Comissão Administradora do Rio da Prata, para favorecer a empresa holandesa Riovía, que fará (ou faria a obra).

Vê-se, pois, que o desabafo de Mujica foi mais sincero do que sua tentativa de dar o dito por não dito, ao afirmar ontem que "nada nem ninguém poderá nos separar".

Prefiro vazamentos sinceros a uma falsa história oficial.


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