Folha de S. Paulo


Criança, policial ou traficante: quem deve ser salvo primeiro?

Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "Sob Pressão"

Você pode ter o melhor plano de saúde do mercado, mas, caso sofra um acidente de trânsito, leve um tiro ou simplesmente tenha uma síncope no meio da rua, provavelmente será socorrido pelo Samu e levado a uma emergência de algum hospital público. Lembram do caso Luciano Huck?

Por um lado, sorte sua porque, em geral, esses hospitais são referências e contam com profissionais muito bem treinados para esse tipo de atendimento. Às vezes, muito mais do que o qualquer hospital privado com hotelaria de primeira.

Por outro, é provável que vá se assustar com a precariedade das emergências. Pensei nisso na quarta-feira passada (10), após mediar um debate sobre o filme "Sob Pressão", promovido pela Folha, no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca.

O longa, que estreia nesta quinta (17), foi inspirado no livro "Sob Pressão - A Rotina de Guerra de Um Médico Brasileiro", escrito por Márcio Maranhão e lançado pela editora Foz em 2014. Além de Maranhão, participaram do debate o diretor Andrucha Waddington, o ator Ícaro Silva e a atriz Marjorie Estiano.

Por mais absurdas que possam parecer cenas como cirurgias emergenciais feitas sem equipamentos básicos, paciente em estado gravíssimo esperando horas por uma vaga na sala de cirurgia, a privação de sono enfrentada pelos médicos e até a invasão do hospital por traficantes, essa é uma realidade bem conhecida por profissionais do SUS que matam vários leões por dia nesses locais.

Uma das cenas que mais chocou a plateia, formada por estudantes de medicina e por alguns médicos, foi a decisão do cirurgião de usar o sangue drenado da hemorragia do paciente, que deveria ser descartado, para fazer uma transfusão. Não havia sangue estocado do tipo do paciente.

Maranhão diz que fez isso no Souza Aguiar (Rio) algumas vezes, quando não havia bolsas no banco de sangue. Lembrou que na rede pública os médicos são obrigados a fazer 'gambiarra' por falta de alternativa. Na falta de equipamentos de hemotransfusão, os médicos improvisavam "filtros" para o sangue feitos com gazes.

As cenas do longa foram filmadas em uma área desativada de um hospital da Santa Casa de Misericórdia, em Cascadura, no Rio. O local já foi centro de referência no passado, e, sucateado, hoje opera com 10% da sua capacidade.

No filme, o doutor Evandro (Júlio Andrade) precisa fazer uma escolha: a quem dar prioridade em três casos cirúrgicos de alto risco. Um traficante, um policial militar ou uma criança de uma família rica –todos feridos em um tiroteio. O drama é: quem salvar primeiro, considerando as péssimas condições do hospital?

Maranhão diz que espera que a história não apenas comova, mas que também acenda a discussão sobre a situação das emergências públicas e do profissional de saúde no Brasil.

A crise das urgências e emergências é sistêmica, crônica. Cenas com pacientes internados em macas pelos corredores e em colchões sobre o chão, e a falta de leitos em UTIs são frequentes na TV, mas parece que já não comovem mais. Nem a população e nem os gestores da saúde.

O filme nos lembra que poderia ser qualquer um de nós naquela emergência. Em maior ou menor grau, a precariedade é generalizada no país, segundo relatórios produzidos por entidades médicas nos últimos anos.

A raiz do problema não é apenas o subfinanciamento do SUS. Está na fragmentação do sistema de saúde, nos mecanismos falhos de regulação e, principalmente, na baixa resolutividade da atenção básica, que leva as pessoas a recorrerem às emergências mesmo em situações não urgentes porque sabem que receberão atendimento rápido. Com isso, superlotam ainda mais esses locais. Essa é a outra faceta das emergências, quase sempre invisível, quase sempre intocada.


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