Folha de S. Paulo


Grávidas em tempos de zika vivem 'sob tortura'

Imagine-se grávida em uma área de infestação do vírus da zika. Agora, imagine-se grávida e pobre, sem condições alguma de comprar repelentes, por exemplo. Um tubo da substância recomendada pelos médicos (icaridina) para proteger-se contra o vírus da zika custa em torno de R$ 60.

Em tese, a icaridina deveria garantir proteção por dez horas. Mas, segundo análise da Proteste, o efeito só dura três horas. Então, na melhor das hipóteses, se for reaplicado três vezes ao dia, um tubo é suficiente para dez dias, no máximo.

Três tubos de repelente por mês (R$ 180) consumiriam mais que 20% da renda de quem sobrevive com um salário mínimo (R$ 880), ou seja, quase metade dos brasileiros.

Em Pernambuco, 77% das mães de bebês com microcefalia estão na linha extrema de pobreza, com renda familiar de até R$ 220. Nas outras cidades do Nordeste, a situação de pobreza extrema se repete entre as maioria das vítimas de zika. Chega a ser uma piada de mau gosto dizer a essas mulheres que elas precisam usar repelente.

Em dezembro do ano passado, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, divulgou que, até o fim de fevereiro deste ano, o SUS passaria a distribuir repelentes às gestantes. Pura falácia. E, no mínimo, um desrespeito às gestantes pobres, que estão batendo, inutilmente, nas portas das unidades de saúde em busca da substância.

O mesmo se repete em relação aos testes sorológicos. Em dezembro, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) prometeu que as grávidas do SUS seriam testadas para zika. Logo depois, a mesma promessa apareceu em peças publicitárias do governo. Se tivesse comprado kits sorológicos com o dinheiro investido na propaganda, já teria sido um bom começo. Quase cinco meses depois, nem as grávidas que apresentam sintomas de zika têm tido acesso a testes.

Esses são apenas dois exemplos do fosso que separa as mulheres pobres das ricas (ou de classe média), que podem pagar por sua proteção com repelentes ou pelo teste sorológico na rede privada. A Anvisa registrou três deles, dois produzidos por empresa alemã e um por uma canadense. É verdade que esses testes têm limitações de sensibilidade e de especificidade e, do ponto de vista da relação custo-benefício, seria questionável oferecê-los em larga escala. Por que então a promessa se essas limitações técnicas já eram conhecidas à época?

O fato é que os direitos das mulheres, especialmente as pobres, estão sendo sistematicamente violados. Essas e outras questões foram discutidas nos últimos dias 22 e 23 de abril em seminário promovido pelo Instituto Patrícia Galvão em São Paulo.

"Os testes da rede particular são imperfeitos, mas ao menos dizem que as gestantes não têm o vírus da zika, o que já é um grande alívio", afirmou a médica Tania Di Giacomo do Lago, que palestrou no evento.

"O estado de incerteza em que vivemos traz uma situação de tortura para as mulheres", disse a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora e professora da UnB, outra palestrante convidada.

"Espero que a zika não vire uma sífilis. Uma doença de mulher negra e pobre. Uma doença de mulheres vulneráveis. Espero que não seja uma doença de mulher alguma. A mulher tem que estar à frente e no centro da discussão para que ela tenha a amplitude que merece", afirmou Suzane Serruya, diretora do Centro Latino-Americano de Perinatologia (OPAS/OMS).

Para a defensora pública Ana Rita Souza Prata, a falta de informação sobre direitos é uma séria barreira para o acesso à Justiça, principalmente para as mulheres menos favorecidas e das periferias, as mesmas que são mais atingidas pelo vírus.

A diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, lembrou a importância de reforçar as redes de mulheres e de novas estratégias de comunicação para assegurar direitos.

Sim, meninas, essa é uma briga que diz respeito a todas nós.

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Após a publicação da coluna, o Ministério da Saúde me encaminhou a seguinte nota:

O Ministério da Saúde vai adquirir três milhões de litros de repelentes para atender aproximadamente 400 mil gestantes em situação de vulnerabilidade inseridas no programa Bolsa Família no âmbito do Plano de Enfrentamento ao Aedes aegypti e à microcefalia. O processo de compra está avançado, uma vez que o termo de referência já foi discutido com o mercado e o edital deverá ser publicado em breve.

A oferta do insumo será realizada por meio do Programa de Prevenção e Proteção Individual de Gestantes contra o Aedes aegypti, publicado na sexta-feira (22) pelo Decreto nº 8.716, envolvendo o Ministério da Saúde e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Caberá ao Ministério da Saúde a aquisição e a distribuição dos repelentes e o crédito extraordinário de R$ 300 milhões do MDS foi autorizado para a realização da compra.

É importante esclarecer que o Ministério da Saúde já recomenda o uso de repelentes para reforçar a proteção contra o mosquito Aedes aegypti, em especial às gestantes, pela associação do vírus Zika com a microcefalia em bebês. Essa medida, no entanto, não deve ser a única maneira de evitar a transmissão da doença. É importante que as gestantes adotem ainda medidas simples que possam evitar o contato com o Aedes, como se proteger da exposição de mosquitos, manter portas e janelas fechadas ou teladas, usar calça e camisa de manga comprida, entre outras.

Por fim, o Ministério da Saúde tem reforçado que a melhor maneira de se proteger contra o mosquito é eliminando seus criadouros. É necessário fazer regularmente inspeção do ambiente, seja em casa ou no trabalho, evitando o acúmulo de água parada, lixo ou entulho.


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