Folha de S. Paulo


Em família, médicos e juízes optam pelo aborto

Certa vez uma amiga muito querida me procurou desesperada: estava grávida e tinha praticado um aborto. À época, J. tinha 18 anos, acabara de ingressar na USP. Engravidou na primeira transa, com o colega de classe. Dele, ouviu apenas: "não vou assumir!". Da mãe: "o seu pai vai te matar!".

Para interromper a gestação de 12 semanas, ela recorreu a comprimidos de Cytotec. J. sofreu hemorragia, e ficou com o embrião retido no útero. Foi preciso recorrer a uma curetagem.

Acompanhei-a até um hospital público porque ela não tinha convênio médico. Lá chegando, após esperar horas por atendimento, ela foi encaminhada a uma sala aonde não pude entrar.

Duas horas depois, a amiga que saiu dali parecia 30 anos mais velha. Pálida, chorando, ela me relatou os momentos de terror vividos naquela sala.

Durante a curetagem, feita sem nenhuma sedação, o médico a torturou sem dó. Apontava para a imagem do embrião no ultra-som e dizia: "Tá vendo ali? É o filho que você matou!"

J. viveu um profundo luto nos meses seguintes. Fazia esculturas de mulheres grávidas. Muitas barrigas de todos os tamanhos e formatos.

Voltei a me lembrar da história após esse caso flagrante de infração ética cometida pelo médico de São Bernardo.

Em quase 30 anos de jornalismo e inúmeras entrevistas com mulheres que já praticaram aborto, não conheço uma que tenha passado pelo processo sem dor. Algumas só conseguiram superar o trauma com muita terapia.

Por isso, entendo que uma mulher em situação de abortamento já está tão violentada física e mentalmente que deve ser protegida, não ser ainda mais castigada, com tortura e prisão.

A questão é que, enquanto o problema é do outro, o que não faltam são os linchadores de plantão. Mas, quando se trata de uma experiência pessoal com a gravidez indesejada, grande parte das pessoas entende que a situação justifica o aborto.

Há cinco anos, uma pesquisa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em parceria com a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) revelou que 20% de 1.148 juízes entrevistados já tiveram parceiras que engravidaram "sem querer". Nessa situação, 79,2% abortaram.

Das 345 juízas que participaram do estudo, 15% disseram que já tiveram gravidezes indesejadas. Dessas, 74% optaram pelo aborto.

Números parecidos foram encontrados em outro estudo da Febrasgo (federação das sociedades de ginecologia e obstetrícia) feita com ginecologistas: 79,9% dos médicos relataram que, diante de uma gravidez indesejada, suas mulheres abortaram.

Entre as ginecologistas, a situação é semelhante: 77,6% das que viveram gravidez indesejada optaram pelo aborto.

Por outro lado, 60% dos profissionais ouvidos na pesquisa relataram que não ajudariam uma paciente (encaminhando a outro médico ou indicando medicamento abortivo) que solicitasse o aborto.

Os números refletem o que outras pesquisas populacionais já haviam constatado: uma coisa é como as pessoas agem e conduzem suas vidas, a outra é o que elas consideram moralmente correto responder sobre o tema.

O fato é que não conseguimos nos colocar na condição do outro. Aos que defendem que mulheres que abortam merecem ir para a cadeia, eu os convido a uma breve reflexão: se fosse sua mãe, sua irmã ou sua filha, você desejaria o mesmo?


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